Eis-nos no mês em que a deusa da secura reina sobre o planalto central do Brasil, afastando Dânae do território e, com isso, esgota-se qualquer possibilidade de chuva; nem Tlaloc pode com a secura. É o mês em que historicamente meu nariz mostra sua existência autônoma sangrando, espirrando e expelindo dejetos do meu esqueleto em declínio.
Nesse período, tossindo como um poeta romântico, meu humor é o do decaído Hefesto, sem a capacidade de convencimento dos deuses por não produzir nenhuma joia que os encante. Recolho-me, com um iPad e abro a trilogia de Murakami (1Q84, originalmente publicada em 2009 e 2010, tradução de Lica Hashimoto, disponível na Amazon) e enfrento as mais de 1200 páginas digitais em completo isolamento.
E pensar que não houvera sido eu o primeiro a fazer isso. Descubro, ao preparar esta edição da minha Newsletter, que o arquiteto carioca Luiz Guilherme de Beaurepaire só veio a ler o 3o. volume da série por conta de uma pneumonia. É o que ele relata neste post para o site Bons livros para ler.
De minha parte, fiquei com uma dívida maior com Murakami, de quem tenho lido muita coisa desde que comecei este meu mergulho na literatura e cultura japonesas. Lembro-me do original de George Orwell, sem me recordar da trama. Vou à estante e lá dorme, à espera de releitura, a tradução de Wilson Velloso, 17a. ed., Ed. Nacional, 1984, com sua inamovível primeira página…
A minha claudicante memória ainda me traz a lembrança do outro livro de Orwell que li, também sem me recordar da poética de enredo (A revolução dos bichos) e em ambos o rapaz de 29 anos que fui apenas enxergava um homem europeu que viveu as agruras da segunda guerra e, em meio a uma profunda crise existencial e pessoal (incluindo sérias dificuldades financeiras) sentia-se “o último homem na Europa”. É o que se depreende desse artigo de Robert MCcrum para a Revista Bula.
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As circunstâncias que cercam o processo criativo de “1984” constroem uma narrativa fantasmagórica que ajuda a explicar a desolação da distopia de Orwell. Ali estava um escritor inglês, desesperadamente doente, lutando sozinho contra os demônios de sua imaginação em uma casa escocesa localizada em meio aos resquícios da Segunda Guerra.
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A ideia de “1984”, cujo título alternativo era “O Último Homem na Europa”, havia sido incubada na cabeça de Orwell desde a guerra civil espanhola. Esse romance, que tem algo da ficção diatópica de Yevgeny Zamyatin, provavelmente começou a adquirir uma forma definitiva durante o período de 1943 e 44, tempo no qual ele e sua esposa Eileen adotaram seu único filho, Richard. O próprio Orwell alegou ter se inspirado com a reunião dos líderes dos Aliados na Conferência de Tehran em 1944. Isaac Deutscher, um amigo, reportou que Orwell estava “convencido de que Stálin, Churchil e Roosevelt conscientemente traçaram um mapa para dividir o mundo” em Tehran.
(leia o artigo completo se lhe apraz, mas volte…)
Ah, voltou, benévolo leitor. Pois bem, hei de enrolá-lo por muito pouco com essa News. O grande crítico austro-brasileiro Otto Maria Carpeaux teria dito que Orwell não é grande romancista e que sua escrita (dele, Orwell) não permaneceria. Carpeaux o analisa na História da literatura ocidental, logo depois do fenômeno Koestler, o ex- comunista típico e retumbante sucesso internacional sobre o qual se é difícil chegar a uma opinião imparcial sobre o valor de suas obras.
“O dilema da crítica perante o caro Koestler não é só de ordem literária. Os ex-comunistas afirmam que só eles sabem e podem indicar o caminho certo contra o perigo comunista; são os mesmos homens que, quando eram comunistas, afirmaram durante tantos anos que só eles sabiam e poderiam indicar o caminho certo contra os perigos do capitalismo e do fascismo. Abandonaram uma fé para abraçar, com o mesmo fanatismo, a contrária. Não reformaram seu ódio, sua intolerância.
”Mas ninguém negará a boa-fé de Orwell (pseudônimo de eric Blair, 1903-50), cujos excessos antes se atribuíam à mentalidade histérica. Foi socialista; esteve na Espanha prestando seu Homage to Catalonia. Sua sátira Animal farm (A revolução dos bichos) contribuiu para a crítica mais severa poder classificá-lo como grande escritor. Mas não foi grande romancista. Seu famoso 1984 é a típica antiutopia: pesadelo do futuro totalitarismo que esmagará o indivíduo com requintes de desumanidade.”1
Em 1Q84 está o leitor em uma distopia e nem mesmo o talento narrativo de Murakami consegue passar adiante uma colheita gloriosa de letras, que possa ficar à altura da ambição que o autor demonstra ao compor a trilogia. Nem a brincadeira com o Q substituindo o 9, que é homófono ao Q pronunciado em inglês (kiu), salva a situação.
A uma jovem que me perguntou o clássico: “Gostou do romance?” respondi que não conseguia parar de ler (afinal, tampouco conseguia sair de casa, às vezes nem mesmo da cama). É realmente um feitiço de trama e um suspense que o leitor não quer deixar de desvendar. Alternando capítulos entre os protagonistas Aomame e Tengo, Murakami vai tecendo sua teia em volta da gente e não há como desgrudar. Porém, não é um romance como “Caçando carneiros” ou com o frescor de “Ouça a canção do vento”; e o que dizem de “O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação”, de “Kafka à beira-mar” (que ainda não li). O escritor demonstra, em certo sentido, isso que eu senti em “Romancista como vocação”:
Talvez os personagens das minhas obras me pressionem, me incentivem, me encorajem e me façam seguir em frente mais do que eu, o autor, tenho consciência. senti muito isso quando escrevi as falas e as ações da personaem Aomame, de 1Q84. Foi como se, à força, ela tivesse ampliado algo dentro de mim. Pensando bem, acho que sou guiado e estimulado mais pelas personagens femininas. Nem eu sei por quê”.
Bem, como essa News vai se estendo para além do que me propus, acho que só vou deixar aqui uma figura do livro de poemas de Emily Dickinson (vol. 1), lançado pela Unb/Unicamp, num trabalho hercúleo de tradução do meu xará Adalberto Müller. É incrível o silêncio que paira sobre esta tradução, que representa certamente esforço grandioso do tradutor.
Por ora, só uma nota de pesar, por não ver minha amada Dona Aíla de Oliveira Gomes entre as referências tradutórias de Müller, quando se sabe que ela foi uma pioneira entre os falantes de português do Brasil, ao traduzir
“Uma Centena de poemas”, alguns dos quais transcrevi quando tinha mais tempo para escrever em blogs (ainda não haviam as News como ora se apresentam). Deixo o amável leitor com algumas referências e procuro me corrigir na próxima, sendo mais conciso, não fugindo do assunto e falando certeiro sobre o que creio se deve ler antes do jornal diário.
Emily está bem presente no meu blog que pode ser lido, seguindo este link.
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental, vol. 8, Alhambra, 2a. ed., s/d, p.2162/3.
Valeu a espera! Um dia, quem sabe, vou ler algo do Murakami.