Ouçamos a voz de George Steiner*1
"Eu percebo em que grau cada soneto faz parte integrante da obra [de Shakespeare], a tal ponto que não se pode abstrair um sem destruir a obra. Eis o que estimo ser a quintessência de Shakespeare, sem enunciar um mau paradoxo: o grande Shakespeare que se ressente interiormente é o dos `Sonetos´.
Em busca das melhores soluções para tradução, às vezes, o leitor encontra esse desconforto do uso do verbo “extinguir” com a flexão extinga. O sêo Ivo precisava de uma rima com vinga (increase/decease, no original). Ele era um purista e cinzelava cada poema traduzido. Lá no dístico final há algo que me incomoda, mas em nome da rima e do ritmo, vamos lá: No orig.:
"Pity the world, or else this glutton be,
To eat the world´s due, by the grave and thee"
O Sr. Ivo também não quis seguir uma tradução direta de “by the grave and The”, optando por “junto ao túmulo (em lugar de “"Tu e o fundo/do chão”); ele ainda deu outra solução para o verso original (To eat the world´s due) que se transformou em "Tu e o fundo/Do chão, comer o que é devido ao mundo.”
Thereza Christina Motta optou por:
“Tem dó do mundo, ou sê seu glutão –
Devora o que cabe a ele, junto a ti e à tua tumba.
O tradutor anotou numa conferência as dificuldades que encontrou ao traduzir esse soneto, no texto hoje disponível em seu (dele) blog Gaveta do Ivo
SOBRE UM SONETO DE SHAKESPEARE | (blog)
"Outro caderno, já dessa época, na verdade um bloco de notas ...atesta a quantidade absurda de tentativas de transposição de um único verso, como o inicial do soneto 1 ("From fairest creatures we desire increase"), com suas duas aliterações sucessivas (em fr e em cre), até chegar ao equivalente
“Dos seres ímpares ansiamos prole” (se/si e pa/pro), pois ora se obtinha a aliteração mas havia a discrepância da rima, ora aquela não se encaixava na métrica, sem falar em nossa recusa permanente aos circunlóquios ou transposições."


Antôni Houaiss diz que Ivo Barroso faz uma tradução de amor, assim definida por Houaiss: “a tradução de amor é a que se consome na busca de uma estrutura de valores, elementos, pertinências e funções equivalentes aos da [poesia] original.
(…) O leitor se comprazerá, por certo, na leitura dos sonetos de Shakespeare na recriação de Ivo Barroso, pois verá que são criaturas - a palavra é perfeita para o caso - que vivem vida vital em língua portuguesa. Mas se comprazerá mais ainda quando se puser a observar os prodígios de correspondências ou compensações isotópicas que foram consumados na transfusão tradutora.
“Os exemplos podem ser dados a cada soneto, a cada unidade isotópica qualquer - métrica, rítmica, rímica, anastrófica, homeotelêutica, aliterante, assonante, e quantos palavrões mais se quiserem.
“A mero título de amostragem, que se tome um verso só. Seja o primeiro do Soneto XII [no original: When I do count the clock that tells the time.
(…) Ivo Barroso - numa lição da dialética do senhor e do escravo, que impõe, sendo imposto, que subordina, subordinando-se, que escraviza, escravizando-se —, vê-se que ela atingiu o cerne da expressão shakespeariana:
Quando a hora dobra em triste e tardo toque.
(…)
O tradutor José Francisco Botelho frequentemente levanta esse tipo de questão lá no Instagram dele (@jfranciscobotelho). Não sou tradutor e sim um mero leitor de poesia, mas continuo apreciando o trabalho que virou projeto de uma vida - 42 anos dedicados a traduzir os sonetos de Shakespeare. Traduzir poesia, como se sabe, é desafio enorme e exige do tradutor (e poeta) certo grau de recriação.
Fonte: "George Steiner à luz de si mesmo" - entrevistas a Ramin Jahanbegloo, S. Paulo, Ed. Perspectiva, p. 155). A tradução do soneto é de Ivo Barroso.