1Ao Dr. Ursulino Leão (in memoriam)
Se o amigo cavalgou comigo a crônica passada, no lombo de “Pó, o burro de fiança”, sabe que ele salvou seu patrão de ser tragado pelas águas do rio Corumbá; e há de se lembrar da promessa que fiz de falar sobre os dois outros burricos que deixei amarrados ao cordão de minhas memórias – o burrinho de Ursulino Leão, em seu 80º aniversário, em crônica de 2006 e, por fim, o burro Platero, de Juan Ramón Jimenez (Prêmio Nobel de 1956).
Se era bravo o Pó do Bernardo Élis, o Platero de Jimenez “é pequeno, peludo, suave; tão macio por fora, que parece todo de algodão, parece não ter ossos. Só os espelhos de azeviche de seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro”, mas quando o narrador sai montado no Platero aos domingos, pelas ruelas da sua aldeia, confessa que os homens do campo, de roupa limpa e vagarosos, ficam olhando e comentam:
“- Ele tem aço...Tem aço. Aço e, ao mesmo tempo, prata de luar.”
Gosto do burrinho Platero, tanto quanto o Ursulino Leão declarou ter gostado, em sua histórica crônica publicada aqui no POPULAR, onde ficamos sabendo que Lena, esposa do escritor, também se afeiçoara ao burrinho da saga espanhola. No entanto, na crônica, era outro animal que chegou como presente ao cronista nos seus 80 anos: um burrinho tão humanizado quanto o da história original.
Ursulino lembra o leitor que ia pelo caminho da fazenda São João, ainda dolorido pela perda da companheira, “enquanto procurava encontrar uma nesga de satisfação na caligem dos meus pesares”. É, justamente, buscando compensações para suas perdas individuais e o notável declínio humano, no plano físico e espiritual que esses dois autores me despertaram tanto interesse pelos burrinhos.
Em ambos podemos notar a referência à perda, à dor moral, a morte, além da atitude crítica diante dos valores humanos, de modo que se destaca uma humanização (não devocional) do animal. De ambos, notamos surgir diálogos, de onde emanam respostas ou percepções poéticas da realidade. Na narrativa de Ursulino Leão, ficamos sabendo que “havia um mês que os bulcões da morte nos tinham arrebatado a Lena [sua esposa]; e desde então, os horizontes da minha velhice possuem cores esmaecidas”.
A caminhada ali descrita é feita pelo autor “com o espírito anuviado por tais contrastes” e, assim, enveredou-se por um “esquecido trieiro de gado”. Então, surge-lhe de repente “o burrinho, sem ninguém em cima dele. Queimado, com uma malha branca na testa, pernas rajadas e ares bíblicos... Seria um clone do jumentinho que o Cristo montava quando recebeu hosanas de ramos verdes nas ruas de Jerusalém?” – indaga o autor.
Os dois seguem juntos, com a lhaneza do animal e a imaginação poética do homem, como se diante de um presente para octogenário, carregando uma satisfação especial àquele passeio de aniversário.
-“Quer conversar, Platero? Me diga (ele abaixou o pescoço): você nasceu na fazenda São João (ele endireitou-se), não foi?” E à pergunta sobre o trabalho do burrico, vem-nos a surpresa:
- “Notei-o surpreso com a pergunta: será que o senhor não entende? Um burro xucro como eu somente pasta, e brinca de escoicear o vento...”
Homem e animal se separam, dando, cada um, a seu modo passos em direção à missão terrena que lhes fora designada; desconsolado por não poder seguir uma tropa de boiada, o burrinho se embrenha pelo Cerrado; e o escritor, pelos recônditos da imaginação literária, continuando criativo até os 93 anos, a ponto de em 2017 ter sido um dos mais vigorosos escritores goianos, lançando três livros em sequência. Um desses, imperdível, trata de suas memórias e o recomendo com entusiasmo: “Confiteor”, edição póstuma da Contato Comunicação, em Goiânia, lançado em novembro de 2018.
Crônica publicada originalmente no Jornal O Popular de Goiânia, no dia 24/04/2023.
Os burrinhos também amam.