Da água ao Pó (parte 1)
A estória de um burrinho criada por Bernardo Élis me alegra a "Quadra de São José"
Era fim de março passado, quando, postado em minha garagem, apreciava a chuva torrencial que caía sobre nossa casa, que mais se parece uma chácara. Com a mesma força daquelas robustas gotas, tombavam em minha mente as lembranças da infância no Abrigo, época em que as chuvas dessa quadra do ano nos permitiam uma folga do trabalho no eito, para apreciar o aguaceiro protegidos no galpão. Lembrei-me de um conto de Bernardo Élis – “Quadra de São José”, pois era mesmo por essa data que a chuva castigou Goiânia como fizera com a Corumbá daquela estória.
Baixei o livro da estante e agora o tenho sobre a mesa, enquanto escrevo esta crônica; revejo com alegria o autógrafo do mestre Bernardo, datado de 27/2/1973. Pude então reler várias vezes a história que amarra dois burros a estas linhas. Pó, o burro-herói de “Quadra de São José” está amarrado em minha memória a “Um burrico e meu (80º.) aniversário”, de Ursulino Leão, crônica publicada aqui no POPULAR em 2006.
Reconto para convencer o benévolo leitor que os animais têm vida além do papel que lhes são dados nos livros, desde a baleia Moby Dick à cachorra Baleia do Velho Graça. Assim se deu.
“Para as bandas do sul, o céu continuava escuro, ao passo que assim mais para o nascente um escorrido no horizonte denunciava aguaceiro brabo. Numa vista d´olhos como vaqueiro acostumado, Angelino notou tudo isso e, mudando rapidamente de assunto, esconjurou: – Deus me livre de tanta chuva!
“- Nunca vi um São José tão molhado! – ponderou de lá o Marcelo. Falou e soprou na tarde a primeira baforada cheirosa do palheiro que vinha preparando desde que batera a porteira do curral. Angelino não repostou logo. Era repousado no falar e no mover-se. Alongou as pupilas enfraquecidas pelo mar de cabeça-de-boi e de vassourinha fronteiriço à fazenda até o espigão orlado de aroeiras novas. De cupim em cupim voavam as corujinhas; mais além os derradeiros periquitos aprontavam um fuzuê excomungado na fronde da mangueira do pasto.
“- Bem, eu já vi, menino, – disse por fim o vaqueiro. Na era de vinte. Oh! Ano danado pra chover!
“- Igual a este ano? – interrogou incrédulo o Marcelo.
“- Home, miles de vezes mais, estou para lhe garantir.”1
E assim a estória segue com diálogos precisos enquanto “o poente se oferece como um buraco azul nas nuvens” para o leitor do conto. Ficamos, então, sabendo que foi naquela quadra de São José que o patrão do vaqueiro narrador havia viajado para “os lados de Amaro-Leite, tendo prometido voltar no dia do aniversário da esposa, que se daria no 21 de março; e também se toma conhecimento que “por mal dos pecados, no dia 20, justamente, caiu uma cancã d´água mesmo aí no Tombador e o Rio Corumbá pegou um aguão dos trezentos... quando à noitinha chegou à fazenda a notícia de que a ponte velha do Boqueirão tinha rodado, deixando só uma viga de aroeira, “cuja ainda está, peba de viga desgranhenta – rodou a ponte” –, lamenta o vaqueiro.
Mas e o José? Pergunta a patroa incomodada. Capaz de ele não poder passar o Corumbá, ainda reclama, mas o vaqueiro não concorda com isso, embora tenha alimentado receios: “mas qual! O patrão está montado no Pó e o Pó é burro de fiança!”
E montado no burro Pó segue a aventura da travessia do Sêo José que só assim, por milagre, pôde estar em casa no dia dos anos da patroa, com um desenlace que não vou tirar ao leitor o prazer de descobrir por si mesmo, lendo o conto.
O fato, meus amigos, é que além de um resfriado, fiquei com meus devaneios ao ver a chuvarada deste molhado São José 2023, rememorando o bravo burro Pó do Bernardo Élis, que amarrei ao Burrinho de Ursulino Leão e ao de “Platero y Yo” de Juan Ramón Jimenez (Prêmio Nobel de 1956); estes envoltos em outras formas de graça que não inclui a aposentadoria do burro Pó, pelos seus feitos meritórios, porém esta parte fica para a sequência da história se o amigo tiver paciência de esperar pela crônica da próxima quinzena.
ÉLIS, Bernardo. Caminhos e descaminhos, p. 12/3.
Papai nasceu aos 19 de março, e mesmo vovô sendo protestante de raiz, mandou seus preconceitos às favas, e inaugurou para ele e seus seis filhos que viriam, nomes compostos. Papai ficou com Walter José - afinal teria nascido no dia do Santo.
Aqui em São Paulo, na igreja de São José, reúnem-se nessa data há muitos anos, os Josés que por aqui residem, para uma missa comemorativa. Até uns anos antes de sua enfermidade, meu pai participava quase que como um beato.