A ideia de apresentar meia dúzia de artigos sobre a literatura chinesa me ocorre agora, ao retornar de um giro de quase dois meses pela China. Ao retornar, notei um vivo interesse de amigos, repórteres e familiares que me perguntam sempre: - E aí, como foi a China? - Tento resumir com o adjetivo “adorável”, mas é muito pouco. Querem saber sobre o povo, a culinária, os hábitos, a literatura. o convívio social e mais.
Assim, a China tem sido o tema recorrente de conversas com amigos e até desconhecidos. Durante a semana passada, conversei com jovens e experientes repórteres sobre o mesmo tema e ministrei uma palestra com o tema Literatura e viagem.
Minha preparação para a viagem incluiu o mergulho na cultura, nas artes e na literatura da China. Li romances, assisti vídeos e filmes de viajantes jovens e experientes e estudei alguns detalhes do antigo “Império do Meio”, enquanto a Helenir se ocupava mais da história, economia e geopolítica do país continental, tendo como guia o livro de Henry Kissinger (“Sobre a China”).
Como sempre, meu foco é a literatura de ficção e o da Helenir, livros históricos e de geopolítica. “Sobre a China” foi o livro que compartilhamos, além de “As três irmãs” (leitura que não concluí ainda) e “Cisnes Selvagens”, de Jung Chang. Destacarei aqui Dai Sijie, Ha Jin, Yan Lianke e Yu Hua. De volta pra casa, por sugestão de ouvintes das duas palestras ministradas na China, adicionei ao cardápio de leituras um velho conhecido meu Mo Yan, pseudônimo de Guan Moye (1955) ganhador do prêmio Nobel de 2012, ao lado de Gao Xingjian (2000), este último naturalizado francês.
Dai Sijie nasceu em 1954 em Putian, sudeste da China, e emigrou para a França, em 1984, com uma bolsa de estudos no Instituto de Altos Estudos de Cinema, onde se tornou um premiado roteirista e diretor, inclusive, tendo adaptado para o cinema seu primeiro romance (“Balzac e a costureirinha chinesa”), filme de 2002. Embora escreva em francês, Sijie é considerado como um autor chinês. Seu livro ora comentado pode ser considerado por algum comunista empedernido, como antirrevolucionário, mas nunca panfletário.
Na linha do que afirmou Mo Yan em 2009: "Um escritor deve exprimir crítica e indignação perante o lado negro da sociedade e a fealdade da natureza humana, mas não devemos recorrer a formas de expressão uniformes. Alguns poderão querer gritar nas ruas, mas devemos tolerar aqueles que se escondem nos seus quartos e usam a literatura para transmitir as suas opiniões".
Para os leitores interessados na poética de enredo, o livro pode prender e tornar-se até mesmo uma leitura rápida e fácil. Trata-se da história de dois adolescentes Luo e o anônimo narrador que são enviados para uma montanha distante da China (com o significativo nome de Montanha da Fênix Celestial) num processo de reeducação típico da época da Revolução Cultural maoísta, que enviava jovens de famílias pequeno-burguesas para áreas isoladas e rurais, onde deveriam “reaprender” a convivência comunitária de acordo com os princípios comunistas.
O narrador nos resume o que foi esta reeducação: “Na China vermelha, no fim de 68, o Grande Timoneiro da Revolução, o presidente Mao, lançou uma campanha que iria mudar profundamente o país. As universidades foram fechadas, e os ´jovens intelectuais`, quer dizer, os secundaristas, foram mandados para serem “reeducados por camponeses pobres”. A ideia, anos mais tarde, serviu de base a um desastre maior no Camboja, causando milhares de assassinatos.
O narrador anônimo e seu amigo Luo são filhos, respectivamente, de médicos e dentistas, que se valem da habilidade de contar histórias, de tocar instrumento, e de relatar os filmes (realismo socialista norte-coreano) passados numa cidade próxima à aldeia da montanha, para reunir em torno deles o chefe da aldeia e vários moradores, criando um clima de magia só possível pela boa narrativa.
Quando toca ao violino uma sonata de Mozart e temendo ser punido por exaltar a música ocidental, com grande astúcia, ele se safa da fúria do chefe. Afinal, “há anos todas as obras de Mozart, assim como qualquer outro autor ocidental estavam proibidas em todo o país”, mas nossos heróis transformam o nome da peça: “Mozart pensa no presidente Mao” - diz Luo em nome do colega músico e narrador ao chefe da aldeia.
Como todos os livros eram proibidos na China, a única fonte de conhecimento dos jovens eram os manuais de instrução de base, sobre indústria e agricultura e o livro vermelho dos pensamentos de Mao. Mas na distante montanha da “Fênix celestial”, Luo e seu colega são brindados por uma descoberta vivificante – uma valise de livros, que roubam de um personagem secundário, mas relevante (apelidado Quatro Olhos):
“Dentro da valise, pilhas de livros iluminaram-se com grandes escritores ocidentais nos acolheram de braços abertos: à frente, estava nosso velho amigo Balzac, com 5 ou 6 romances, seguido de Victor Hugo, Stendhal, Dumas, Flaubert, Baudelaire, Romain Rolland, Rousseau, Tolstoi, Gogol, Dostoiévski, além de ingleses, como Dickens, Kipling, Emily Brontë...”
Balzac está no centro da narrativa porque é através dele que os nossos heróis se aproximam da aprendiz e auxiliar do alfaiate da aldeia (e do próprio alfaiate) e, através da leitura repetida do único romance até então disponível. O narrador com medo de perder o livro faz a transcrição em chinês de trechos do romance “Úrsula Mirouët” (em um casaco de pele de carneiro). É através da leitura e da narrativa do que se leu que os laços entre os três se fortalecem, gerando uma espécie de triângulo amoroso cujo clímax é favorável ao romance entre a costureirinha e Luo.
“Bā'ěr zhā kè” 巴尔扎克 esses quatros ideogramas tornam-se uma “magia de tradução”. Desses caracteres chineses emanava um sabor exótico, sensual, generoso como o perfume envolvente de um vinho conservado por séculos numa adega”. Com medo de perder o único exemplar de literatura ocidental acessível, “decidi copiar o texto diretamente sobre a pele de carneiro do meu único casaco”, confessa o narrador.
Com a valise roubada, outros encantamentos se sucedem para os três amigos: “O pai Goriot” (em chinês traduzido para O velho Go), “Jean-Chistophe” (de Romain Rolland), “O Conde de Montecristo” (Dumas), “Madame Bovary” (Flaubert), mas é Balzac quem tem a última palavra que molda a vida futura da costureirinha, porque mais do que reproduzir os modelos das roupas descritas nos romances, ela aprendeu que “a beleza de uma mulher é um tesouro que não tem preço”.
A costureirinha foi para nossos heróis (e pode ser para o leitor) “todo o esplendor do devaneio”. E espero que também assim seja “a leitura [que] continua a ser um rito fundamental de percepção e intelecção, uma forma de tomada de percepção do mundo e suas representações e, dessa forma, é parte e parcela da autor representação, do auto devir e da auto formação, de uma forma mais ampla” – como diz o crítico Christian Moraru, na Revista Canadense de literatura comparada, 2009.1