Viva Cecília Meireles, 120 anos
Notas para uma "Live" com Fernanda Meireles, neta de Cecília Meireles
1. Como você conheceu Cecília, obra, biografia?
Beto: colocando em perspectiva, Fernanda, apesar de ter sido criado como órfão, recebi uma educação de qualidade, no Colégio Couto Magalhães, em Anápolis, durante os anos 1960. Eu estudava com bolsa (e por isso mesmo, teria que garantir notas altas, me superar!). Lá conheci professores adoráveis, e entre esses uma ficou marcada como professora dedicada à formação – Ercília Macedo-Eckel, que hoje é escritora e faz parte da Academia Feminina de Letras de Goiás. Esta professora me ensinou o gosto pela Literatura e o respeito à Língua Portuguesa. Cecília fazia parte da lista de poetas que éramos obrigados a ler. Com o passar do tempo, a obrigação foi ficando mais suave, virou diversão...
2. Por que alguém deve ler Cecília Meireles?
Beto: Gostaria de começar considerando uma pergunta preliminar – “Por que alguém deve ler Poesia hoje?” – Enfrentei essa questão em meu livro de ensaios literários “Os fios da escrita”, onde há dois ensaios sob o título de “Ler poesia para quê?” – ali eu flagrei uma contradição do mundo atual que foi assim captada pela professora Goiandira Ortiz: “a literatura, especialmente a poesia, exige um modo de ler que o contexto atual dificulta com sua velocidade de comunicação, de apelos visuais e ruídos, jogando o sujeito para fora de si, não permitindo tempo-espaço para uma disponibilidade de silêncio interior”.
Somente esse “silêncio interior”, esse mutismo pensante, essas meditações, em meio às turbulências do mundo hodierno, só o silêncio, dizia, pode nos conceder o dom e a graça de ler e fazer poesia – em meio ao furacão midiático. Em um livro de 1989, depois traduzido ao português em 2010, o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser alertava para os desgastes que a tecnologia e a pressa das rotinas no mundo poderiam impor não só à Poesia, mas à Escrita em geral. Talvez por isso, a poetisa polonesa Wislawa Szymborska tenha dito num poema que os leitores de poesia “somos dois em mil”. Creio que vale lembrar-nos deste trecho:
Alguns gostam de poesia
Alguns –
ou seja, nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.
...
E assim mesmo ainda há esses DOIS. Cá estamos nós justificando-nos, procurando um PORQUÊ, quando o importante seria pensar em COMO.
Dou a palavra à Cecília, que dá-nos mais do um MOTIVO, dá-nos esta “Reinvenção”, poema do livro VAGA MÚSICA (1942, p.195/6 da Aguilar), que é um dos favoritos do meu amigo professor Adriano Ferreira Leite. Ouçam-no:
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
3. O que você descobriu de mais importante e significativo, para sua vida, na obra dela e como você aplicou?
Beto: Olha, Fernanda, eu não costumo ser utilitarista com a poesia, nem tampouco com as narrativas de ficção – romances, novelas etc., mas um fato que me conquistou na vida de sua avó e nossa grande poetisa que é o fato de ter sido órfã, como eu fui também, em circunstâncias um pouco mais dramáticas – de ter a ausência de pai e o desprezo da genitora.
O poeta e empresário Carlos Willian, diretor da Revista Bula, que é um excelente leitor de Cecília e da literatura em geral foi quem me resumiu melhor isso. Cito:
“Órfã de pai e de mãe, foi educada pela avó materna, que exerceu forte influência sobre a sua formação. Escreveria mais tarde: “Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano. (…) Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu perguntava: ‘Por quem você está rezando?’ ‘Por todas as pessoas que sofrem’. Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a vida”.
4. E para a vida de outras pessoas?
Beto: Acho que essa pergunta fica respondida na forma anterior (3.)
5. Algum pequeno detalhe que você reconhece que aprendeu com ela?
Beto: Tudo que me faz filiado a uma corrente metafísica da poesia, que vem lá dos ingleses e passa por São João da Cruz, Teresa d´Ávila e Dora Ferreira da Silva; vai de Jorge de Lima, Murilo Mendes, Schmidt e Tasso da Silveira; à poesia mística de Sônia Maria Santos em Goiás.
Então, eu diria que foi no misticismo lírico apontado pelo crítico e poeta Darcy Damasceno que se deu meu maior encantamento com a poesia dela, Cecília, encantamento que entre os poetas jovens encontrei nos baianos João Filho e Wladimir Saldanha, e no goiano Marra Signorelli, na poesia de Érico Nogueira, do Hugo Langone etc. É uma sensibilidade muito minha, que venho alimentando há muito tempo e poetas como os citados realimentam e ainda me desesperam, por saber que jamais serei capaz de ombreá-los com a minha poesia.
Fico próximo daquela situação do escritor norueguês Knausgard, quando fala do francês Michel Houellebecq: "O que me impede de ler (mais) os livros de Houellebecq e ver os filmes de Lars von Trier é uma espécie de inveja. Não que eu inveje o seu sucesso, mas porque ler esses livros ou ver esses filmes obrigar-me-ia a contemplar quão excelsa pode ser uma obra e quão inferior é o meu trabalho" (Kark Ove Knausgard).
Porém, quero afirmar que, ao contrário do norueguês, não chego a tanto, pois continuo lendo esses poetas citados com muito entusiasmo...
6. Qual o seu livro preferido?
Beto: Não sou um profundo conhecedor de Cecília para cravar um livro favorito. Disse mesmo ao João Filho e ao Adriano Ferreira Leite que me sabatinaram sobre meus ensaios sobre Poetas Católicos do Brasil (no Oratório Virtual) que eles estavam me abrindo os olhos para uma Cecília a quem não havia dado o devido valor daquele misticismo lírico e daquele “metafisicismo” (a expressão é do Darcy Damasceno, prefiro poeta metafísica e ponto). Meu livro de cabeceira no caso dela é, pois, a Antologia da Aguilar. O João me levou a olhar com mais atenção para “Pequeno oratório de Santa Clara” e para o “Romance de Santa Cecília” (ler CLARA, pág. 552 da Aguilar), mas posso afirmar que gosto muito de Vaga música e Mar absoluto.
7. Qual sua antologia pessoal? Cite 20!
Beto: Vixe! Eu selecionei alguns poemas e também no meu Twitter pedi sugestões aos amigos. Gosto da seleta do Carlos Willian e também daquela feita pela Rebeca Fuks, no site Cultura Genial. Da lista feita por meus amigos, há récitas que desejo fazer. Eis a 1ª. que ofereço ao amigo Antonio Carlos, que mantém o perfil do Twitter assinando como Lambspring. O poema é LUA ADVERSA (p.197 da Aguilar)
(...)
2 Dicas do João Filho: “Guerra” (p.277 Aguilar) e “Lamento do oficial por seu cavalo morto” (p.276 Aguilar).
1 dica preciosa do amigo músico, humorista e filósofo César Miranda – “2º. Motivo da Rosa”, poema dedicado a Mário de Andrade. Leio assim... (p.242 da Aguilar).E o próximo, ofereço a um novo amigo (virtual) de grande sensibilidade e que me vem dando dicas valiosas para meus estudos da língua Japonesa – o Cláudio Shikida. O poema é de Poemas infantis, “Ou isto ou aquilo”, p. 734 que eu leio assim....
Em “Epigrama nº. 5” aprendi a lição dada pelo João Filho de novo – um lirismo de pensamento, onde Cecília parece querer plasmar, desenhar... Digo assim o poema:
GOSTO da gota d´água que se equilibra
na folha rasa, tremendo ao vento.
Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra:
e ela resiste, no isolamento.
Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto:
pronto a cair, pronto a ficar – límpido e exato.
E a folha é um pequeno deserto
para a imensidade do ato.
8. Qual o verso te faz companhia, e você sabe du coeur?
Beto: Ah, escutei tanto a versão musical de Motivo, musicado pelo cearense Fagner que “grudou à minha cabeça” e, penso, na de quase todo brasileiro de minha geração.
9. O que gostaria de me perguntar?
Beto: como foi conviver com as “Três Marias de Cecília” (mostrar capa do livro).
10. O que gostaria que eu te perguntasse?
Beto: O que mais desejar.
11. O que tens certeza que eu preciso saber?
Beto: Não sei.
12. O que sabes que eu não sei?
Beto: Idem.
13. Qual o mais importante em Cecília?
Beto: Ter sido a Cecília Meireles que o Brasil e Portugal (e todos os amantes da língua de Camões) amam.
14. O que falta pesquisar?
Beto: O universo e os planetas habitáveis.
15. O que é um poeta universal?
Beto: No dicionário do nosso conterrâneo, o goiano Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, encontramos pistas sobre o ser universal (escritor, artista etc.). Ele se refere à “universalidade como algo (ou alguém) que se quer (e se afirma como) pertinente à totalidade, ao todo, ao mundo inteiro, à Humanidade, a toda gente, o gênero humano...”
Aprofundando um pouco mais isso, vamos encontrar na Poética de Aristóteles mais detalhes sobre o universal. o valor do universal é posto, desde a poética de Aristóteles por oposição ao particular de um modo bem genérico, a poesia expressaria o universal, enquanto a história, o particular
"Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado do que a História. É que a poesia expressa o universal, a História o particular. O universal é aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verossimilhança ou a necessidade, e é isso que a poesia procura representar, atribuindo, depois, nomes às personagens."
Mais recentemente, Benedetto Croce, um pensador italiano atualizou isso nos seguintes termos: "conhecimento intuitivo ou conhecimento lógico; conhecimento pela imaginação ou conhecimento pelo intelecto; conhecimento do individual ou do universal; conhecimento das coisas singulares ou das relações entre elas: em suma, conhecimento que produz imagens ou que produz conceitos.
Numa visão mais popular, a afirmação do crítico paranaense Temístocles Linhares é mais direta e aplicável mesmo a Cecília. No livro “Diálogos sobre a poesia brasileira” ele afirma: “o que se depreende da poesia dela – com essa tendência [isto principalmente no livro “Viagem”] de “catalisar elementos sensoriais e extrair dessa operação efeitos da maior expressividade é esta filosofia – a da tradição, intenção de universalidade, ao lado da brevidade da vida, da incompreensão humana, da descrença religiosa, que se fazem motivo de contínua reflexão para o poeta”.
Outro gigante da crítica brasileira, o austro-brazuca Otto Maria Carpeaux confirma essa tendência ceciliana à universalidade. “A sra. Cecília Meireles não é poetisa [naquele sentido francês da poesia falsamente “feminina”, em sentido pejorativo]. Cecília é poeta. E grande poeta” E mais: “é poeta inconfundivelmente brasileiro, mas parece-me muito difícil enquadrar sua arte na evolução histórica da poesia brasileira”. (...) “Ela embora pertencendo a nós e ao nosso mundo, é poesia de perfeição intemporal” – isso diz respeito à universalidade, nos termos de Chico Azevedo.
E finalizo com uma pequena nota que começa a responder à pergunta nº. 17 – Carpeaux diz na História da Literatura Ocidental, vol. 8 que “Alguns críticos já quiseram defini-la como “mais portuguesa do que brasileira” pelo único motivo de o modernismo brasileiro não conhecer a tradição de poésie pure (poesia pura); mas esta tampouco existe assim em Portugal. Uma corrente tão universal da poesia não conhece fronteiras nacionais. Em linguagem clássica portuguesa e com sensibilidade inconfundivelmente brasileira já escreveu Cecília Meireles poesias que pertencem ao patrimônio da melhor poesia universal deste século” (p.2181)
16. Qual a importância da obra de Cecília Meireles para o Brasil?
Beto: vide 15 e 18
17. Qual a importância da obra de Cecília Meireles para os países de língua portuguesa?
Beto: vide 18.
18. Qual a importância da obra de Cecília Meireles para o mundo?
Beto: Imensa para o Brasil e significativa para o mundo [principalmente de língua portuguesa, que é idioma que não se afirma em quantidade de obras e poetas, comparado, p.ex. ao mundo anglófono!]. Bastaria consultar dois livros de Darcy Damasceno para entender isso (falo de “Cecília Meireles: o Mundo contemplado” e “Poesia do sensível e do imaginário”), Darcy talvez seja “o maior exegeta da poesia de Cecília” (na expressão usada pelo professor Adelto Gonçalves. Ele nos desenha a noção da grandeza de sua poesia. “A premiação pela ABL, em 1938 concedida pelo livro VIAGEM significou o reconhecimento de um empenho monacal no estudo de nossa tradição literária e na assimilação de recursos expressivos da arte verbal. “Com esse livro – continua Damasceno, “ela ingressava na primeira linha dos poetas brasileiros, ao mesmo tempo que se distinguia como a única figura universalizante do movimento modernista (ao qual ela passou à parte, eu diria acima – porque sempre esteve “à margem das escolas (literárias) e mesmo com certa independência em relação ao Modernismo (Damasceno).
Enfim, desde VIAGEM Cecília se mostrava “não só dentro de linhas tradicionais, como também aspirava a ser – e o foi – com este livro, considerado por Damasceno como “a primeira obra acima de fronteiras que haja aparecido no modernismo. Cumpria-se nela a preceptiva dos espiritualistas [como Tasso da Silveira] quando reclamavam para a renovação de nossas letras o encadeamento com a tradição, sustentáculo filosófico e intenção de universalidade”. (trecho de Introdução à Poesia Completa da Aguilar)
19. O que você gostaria de dizer para ela em seu aniversário de 120 anos?
Beto: Diria algo assim:
Minha avó era Cecília, como mãe agiu –
na ausência do colo materno.Depois, vieste tu, Cecília e teu mar de poesia.
Não vi a lua contigo, Cecília, vi com minha filha –
Cecília minha, que como suas três Marias –
é medida suficiente
para não sonhar senão
no colo amigo da Rainha.
...
20. O que você imagina que ela te responderia?
Beto: Não faço a mínima ideia.