Eis o tempo e seus poderes mitológicos: um deles é mostrar com clareza os momentos decisivos em que sem perceber ou se dar conta dos efeitos, fazemos uma guinada decisiva na nossa vida.
Se para Zuenir Ventura, 1968 fora o ano que não terminou e para Joaquim Ferreira dos Santos, 1958 foi o ano que não deveria ter terminado, para mim, 1974 foi o ano da mais importante travessia do jovem que eu fui em direção ao futuro que deveria durar para sempre.
No Brasil, 1974 foi também o ano da redemocratização, quando o presidente Ernesto Geisel promoveu a chamada “abertura lenta e gradual”.
A minha mudança começou no final de 1973, findo meu primeiro ano como aluno de Física da UFG, quando viajei para Anápolis e Brasília. Se Anápolis era o espaço da contenção e da vida restrita, a capital Federal o era do desbordamento, da ultrapassagem dos limites de uma vida puritana típica da criação entre os protestantes no Abrigo.
Sentia-me livre das peias da doutrinação cotidiana dos anos , mas ainda um tantinho assustado com o passo que havia dado ao enfrentar a Capital goiana e ter atravessado relativamente bem o primeiro ano “no mundo lá fora” que todos no Abrigo diziam ser apavorante.
Aquela foi a primeira vez em que aproveitei de fato as chamadas “férias grandes”, me divertindo à tripa forra, como diriam os velhos cronistas do início do século XX. Pude tomar cerveja, sem censura, com meus primos, fazer coisas inusitadas, mesmo com as parcas economias pessoais, namorar uma prima, ir às festinhas para dançar coladinho sob a luz negra.
Fui pela primeira vez à Biblioteca do Instituto Nacional do Livro (INL), na W3 e ao Conjunto Nacional, um centro de compras enorme, inacreditável para meus padrões de vida sem consumo.
Em Brasília, vivenciei as experiências de um jovem e inexperiente universitário numa cidade grande, na mirada de quem sempre morou na interiorana Anápolis. E como bom garoto evangélico, depois de farrear com os primos, ia me penitenciar nos cultos da Igreja Cristã Evangélica em Taguatinga.
Ali comecei a namorar a filha de um pastor com quem participei de um “retiro espiritual”, cuja agenda era composta de hinos, corinhos, rezas, refeições e muitas, mas muitas palestras de convencimento dos fiéis.
Voltei vazio para Goiânia, sem a menor ideia do que me seria aquele ano de tantas definições futuras, mas vislumbrando em tons ainda esmaecidos o que a vida poderia me reservar.
Em 1974 comecei a dar um pouco mais de atenção ao clima no país e ao pacto que começa a pôr fim ao ciclo militar. Na Universidade esse era o tema de qualquer rodinha de alunos.
A mão pesada do luterano Geisel baixou forte contra as alas mais radicais do governo responsáveis pela repressão e a Censura; e contra a esquerda que atuava na guerrilha urbana e na luta armada.
Instaurou-se a abertura da imprensa, abrindo um novo tempo de ouro para o jornalismo, agora livre da censura, com destaque para O Pasquim. Voltaram do exílio figuras famosas e deles guardo a pessoa do guerrilheiro Fernando Gabeira. Muitos dos personagens que ascenderam nos partidos que naquele tempo começaram a sair da clandestinidade viriam a ter força no cenário político e estão aí até hoje. De outro lado, “os que perderam a guerra quase civil” - os militares da rotina diária, sem atuação política, foram esquecidos e vilipendiados.
Eu tinha uma vaga noção do que se passava fora do meu mundo. Precisava ganhar a vida, e, ademais, não tinha tempo nem nutria interesse pela política. O que eu desejava, ao retornar das férias, era ter boas notas no curso de Física e alcançar um futuro de sucesso. Foi assim que 1974 abriu um sonho azul e um sol na cabeça e, principalmente, aquele foi o ano em que comecei a namorar uma garota da Engenharia, a mulher que, para minha alegria e conforto, começa este 2024 ao meu lado, meio século depois.
Que maravilha de crônica-memória, Beto!
Obrigado, poeta João Filho.