Um dilema se estabelece para este cronista diante da obra do escritor chinês Yan Lianke (1958), porque o desejável é falar só de literatura e viagem – tema central dessa série de crônicas, sem gerar um texto que se torne uma gangorra ou uma enquete entre estar contra ou a favor do regime ou do Governo da China – do Partido único etc. Afinal, o cronista ama a China e o povo chinês.
Então, penso que, às vezes é inevitável falar apenas de literatura e esquecer as mazelas do governo, onde talvez um caso notável seja pensar em Dostoiévski e no czar Nicolau I ou em Aleksandr Solzhenitsyn e o regime comunista soviético.
Nessa hesitação antes de escrever sobre este autor, que tem na ironia e na sátira seus pontos mais fortes, seus recursos de expressão, fui consultar amigos chineses sobre a literatura dele Yan Lianke; e retornei aos dois romances que li antes da recente viagem à China – “O sonho da aldeia Ding” e “A serviço do povo”.
Dos comentários das minhas amigas chinesas – uma professora e outra escritora, cujos nomes omito em nome da privacidade, retirei o essencial para me animar a prosseguir.
Uma delas que mora em Hong Kong, me disse:
“A tensão e o poder de suas criações não vêm de perspectivas institucionais e políticas, mas de suas origens. Ele, como uma criança crescendo em um campo pobre e terra estéril, tem o hábito de "escapar" do "mundo" original para o da ficção. Isso vale para a literatura. Há um provérbio chinês – similar ao brasileiro que diz “não há como fazer algo [omelete, no ditado brasileiro] sem quebrar algo [ovos]”; e no contexto o verbo quebrar (destruir) diz mais sobre se opor ao que é preciso ser corrigido do modelo original, diz respeito à verdade e ao self do autor. Remova o original, quebre-o e estabeleça algo novo.”
Aqui, ao cronista parece mais adequado o termo brasileiro descontruir, porque não se trata de uma estratégia de revolução, mas de renovação.
Para a amiga chinesa:
"A maior construção da literatura talvez seja uma espécie de destruição" (ou desconstrução). Este é o conceito criativo que Yan Lianke vem usando ao longo dos anos, e essa é a ideia que ele repassa para os jovens que o procuram receber seus conselhos” – conclui.
Muitas vezes com profunda crítica social e perspectiva humanista, Lianke afirma que "a maior construção da literatura é a destruição" – a "destruição" aqui pode se referir ao desafio e à desconstrução das ideias tradicionais, ideias antigas e estruturas sociais e isso tem aderência aos modelos críticos e de sátira inerentes à criação literária. Esta "destruição" não é uma destruição literal, mas uma destruição criativa, através do poder da literatura de revelar problemas, para desencadear o pensamento, e assim promover avanços e mudanças na sociedade.
No romance “O sonho da aldeia Ding” notamos dois fatos relevantes – as epígrafes bíblicas e o narrador que é uma espécie de Brás Cubas mirim, sem a elaboração do personagem machadiano, mas nos conduzindo do mesmo modo durante a narrativa.
Especificamente, nessa "destruição" incluo alguns tópicos surgidos nos comentários de leitores chineses nos fóruns do Baidu (o Google deles), justificando o estilo de Lianke por resultados narrativos tais como: 1. Libertação ideológica: a literatura pode quebrar a mentalidade das pessoas e encorajá-las a olhar para os problemas sob uma nova perspectiva; 2. Crítica social: a literatura revela frequentemente que a sociedade não entende a irracionalidade pública e mantém suas críticas (mesmo que veladas) e isso serve para inspirar reação pública; 3. Inovação cultural: a literatura pode promover a diversidade cultural e a inovação, rompendo com os padrões culturais tradicionais; 4. Despertar pessoal: a literatura pode encorajar os leitores a refletirem sobre si mesmos e a alcançarem o despertar espiritual pessoal.
Como se denota, há uma acomodação mais calma diante da destruição potencial dos livros de Lianke de onde se pode tirar coisas positivas e nem ser considerado antirrevolucionários. O fato é que na narrativa de O sonho da aldeia Ding o leitor encontrará uma espécie de narrador Machadiano no pequeno de 12 anos morto por envenenamento e não pela Aids.
Yan Lianke, nascido em 1958, na província de Henan e se tornou um renomado escritor chinês, conhecido por suas obras que frequentemente abordam temas sociais e políticos sensíveis em seu país. Sua carreira literária é marcada por combinar realismo social e elementos de sátira e de certo teor surrealista.
Seus livros muitas vezes enfrentam a censura do governo chinês devido à sua crítica aberta às políticas governamentais e às condições de vida das pessoas comuns e, mesmo tendo sido censurado, a obra de Lianke ganha forte repercussão no ambiente da internet e chamou a atenção de editores de todo o mundo, que já o publicaram em 17 países, incluindo o Brasil.
"O Sonho da Aldeia Ding" é um romance impactante que narra a trágica história de uma pequena aldeia rural na China devastada pela epidemia de AIDS nos anos 1990. A obra é inspirada em eventos reais, onde muitos camponeses contraíram o vírus após venderem seu sangue a mercados ilegais incentivados pelo governo local. O livro expõe as consequências devastadoras dessa prática, explorando a dor, o sofrimento e a desintegração da comunidade – do comércio do sangue ao de caixões, a dor é candente no sonho.
A epígrafe é de um texto bíblico (Gên. 40:41) e transcreve os sonhos do Copeiro do Faraó, de seu padeiro e do próprio dirigente egípcio. O simbolismo destes sonhos dão o mote para a história que se lê a seguir em “O sonho da aldeia Ding”. No silêncio da aldeia, logo no primeiro capítulo, a desolação de desenha como no sonho do Faraó: “as vacas feias e magras devoraram as sete vacas belas e gordas...as espigas magras devoraram as sete espigas grossas e cheias”.
Os sonhos são uma constante nos contos, romances, poemas e até nas histórias do taoísmo, havendo até mesmo uma pequena, mas significativa casa-museu: “A casa dos sonhos”, como nos conta Cláudia Trevisan, “é uma pequena construção se localiza num vilarejo de 50 mil habitantes a 440 km de Pequim, o museu traz pinturas que reproduzem sonhos de personagens das obras clássicas, de imperadores, de filósofos e de poetas.”
“Entre os sonhos retratados no museu está o de Zhuang Zi (369 - 289 a.C.), o filósofo taoísta que sonhou que era uma borboleta e, quando acordou, não sabia se era ele sonhando que era uma borboleta ou se ele era uma borboleta sonhando que era ele. Também aparece Li Bai (701 -762), o grande poeta da dinastia Tang (618 - 907) e um dos maiores da China, que celebrava a natureza, a Lua e a bebida. Claro que há um quadro para Confúcio (551 - 479 a.C.), o filósofo que como nenhum outro marcou a identidade chinesa” – afirma Cláudia.
De acordo com estudo de Roy Bing Chan, no livro “The edge of knowing (Dreams, history and realism in modern Chinese Literature”, da University of Washington Press, 2017):
“Os sonhos há muito desempenham um papel na cultura e crença tradicionais chinesas e muitas vezes eram considerados uma ocasião em que as comunicações do reino numinoso chegavam às pessoas durante o sono. Os sonhos eram um componente importante tanto na adivinhação judicial quanto na adivinhação popular. Eles também são um tema proeminente na filosofia chinesa. Os Analectos (Lun Yu), uma compilação de ditos atribuídos a Confúcio (século VI aC), registram o sábio sonhando regularmente com o duque de Zhou, um dos míticos fundadores da civilização chinesa. Muitos estão familiarizados com a passagem do “Capítulo Interno” do Zhuangzi intitulada “Discussão sobre Tornar Todas as Coisas Iguais” (Qi wu lun), na qual o filósofo reflete sobre se ele sonhou em ser uma borboleta ou se é realmente uma borboleta que sonhou de Zhuangzi. Esta parábola ilustra o constante fluxo e instabilidade da realidade. No Budismo, o sonho é frequentemente usado como uma metáfora para a ilusão do mundo fenomênico, subestimando assim a necessidade de abandonar os próprios apegos. A literatura tradicional chinesa costuma fazer uso dos sonhos como um dispositivo narrativo que permite aos personagens entrarem em mundos alternativos ou se reunir com deuses e espíritos. Muitas vezes também aparece como um conceito narrativo através do qual os personagens aprendem a reconhecer a efemeridade da vida.”
É o caminho que percorre Yan Lianke para construir uma narrativa forte e carregada de simbolismo, contando a história da aldeia Ding:
“Assim como é óbvio que as nuvens trazem chuva e o fim do outono traz frio, era óbvio que os aldeões que haviam vendido seu sangue dez anos antes iriam contrair “a febre” [Aids] e deixar este mundo como as folhas mortas que o vento fazia cair das árvores no outono. (...) A doença escondia-se no sangue como meu avô imergia em seu sonho. A doença amava o sangue como meu avô amava o sonho. Meu avô sonhava todas as noites...”
Seu estilo é caracterizado por um realismo forte, em que às vezes o narrador não poupa o leitor dos detalhes mais sombrios e dolorosos da tragédia. Ao mesmo tempo, ele coloca na sua narrativa elementos de surrealismo e fantasia, e isso cria uma atmosfera onírica que intensifica o impacto emocional da obra.
Um dos pontos mais notáveis do romance é a profundidade com que Lianke explora o sofrimento humano. Ele retrata de forma visceral a desesperança e a vulnerabilidade dos aldeões, ao mesmo tempo em que critica duramente a corrupção e a negligência do governo. Através de personagens bem desenvolvidos, o autor consegue transmitir a complexidade das relações humanas em meio à crise, destacando tanto a solidariedade quanto o egoísmo que emergem em situações extremas.
Além disso, "O Sonho da Aldeia Ding" serve como uma crítica social e ética sobre o tema da pandemia da AIDS. Yan Lianke usa essa tragédia para abordar questões maiores, como a ganância, a desigualdade social e a falta de responsabilidade ética das autoridades na aldeia. Sua crítica é incisiva e corajosa, desafiando o leitor a refletir sobre as implicações morais e sociais das políticas governamentais.
Enfim, "O Sonho da Aldeia Ding" é uma obra profundamente comovente e provocativa que solidifica Yan Lianke como um dos mais importantes escritores vivos da China. Sua habilidade em mesclar realidade e fantasia, junto com sua coragem em abordar temas delicados, faz deste romance uma leitura essencial para aqueles que desejam entender mais sobre as complexidades da sociedade chinesa e as consequências humanas das políticas governamentais. É uma obra que não apenas narra uma história, mas também oferece um olhar crítico e necessário sobre o mundo em que vivemos.
Se o benévolo leitor quiser conhecer mais sobre Lianke, recomendo este vídeo no YouTube
Yan Lianke, apesar das adversidades e do controle rígido do governo chinês sobre a liberdade de expressão, continua residindo na China e escrevendo sobre temas sensíveis. Ele conseguiu encontrar um espaço dentro do sistema, adaptando-se às restrições impostas pela censura. Sua habilidade em navegar pelas complexidades da censura chinesa é notável e reflete sua resiliência e determinação em continuar seu trabalho literário.
Ao contrário de outros escritores que emigraram da China para o Ocidente (Hai Jin, Gao Xingjian e Dai Sijiie), Lianke continua morando na China e se acomodou a esse sistema de averiguação prévia de seus escritos, como se tivesse conseguido o seu espaço e pode até mesmo publicar sátiras leves (e nem tão elaboradas) como "A serviço do povo" – que não recomendo, mas onde ele destrói alguns tabus chineses. Seus romances são a voz de um homem contra o regime, sobre o qual o Autor demonstra que continua usando métodos antidemocráticos, que não extirpou a corrupção e mantém práticas autocráticas contra quaisquer opositores.
Yan Lianke teve que se adaptar ao sistema de censura chinês para continuar publicando suas obras. Essa acomodação não significa complacência, mas uma estratégia para manter sua voz ativa dentro de um regime que controla rigidamente o discurso público. Yan tem usado essa tática para publicar obras críticas e satíricas que, de outra forma, poderiam ser completamente banidas.
Um livro secundário – “A serviço do povo”. Para o analista, este é aquele tipo de livro bobinho que vende muito e justifica risos e críticas ao regime, tem sensualidade e crítica social, mas é bem mal escrito.
– "A Serviço do Povo" é isto – uma sátira que exemplifica a habilidade de Yan em criticar o sistema de maneira que possa passar pelos censores. A história, que envolve um soldado e a esposa de seu superior, aborda temas de hipocrisia e corrupção dentro do Partido Comunista Chinês (PCC) de maneira velada, usando o humor e a ironia para contornar a censura. O conto foi publicado na China, mostrando que, mesmo sob rigorosa supervisão, Yan conseguiu inserir críticas incisivas ao regime.
Os romances de Yan Lianke representam uma voz contra o regime. Mesmo que ele tenha que submeter seus escritos à averiguação prévia, suas obras continuam a desafiar e criticar as práticas autocráticas do governo. Ele aborda questões como corrupção, desigualdade e injustiça social, temas que são frequentemente censurados na China. Através de sua escrita, Lianke dá voz às preocupações e sofrimentos do povo chinês, funcionando como uma forma de resistência literária.
Pelo que se sabe, o regime chinês continua a usar métodos antidemocráticos e práticas autocráticas para suprimir qualquer forma de dissidência. Yan Lianke, ao continuar a escrever e publicar dentro deste sistema, expõe as falhas e os abusos do governo. Sua obra é uma crítica constante e corajosa ao autoritarismo, e ele utiliza sua plataforma para destacar a repressão enfrentada por muitos na China.
Em conclusão, Yan Lianke é um exemplo significativo de um escritor que, mesmo sob um regime repressivo, continua a utilizar sua arte para criticar e desafiar o status quo. Sua habilidade em se adaptar às restrições da censura enquanto mantém uma voz crítica é uma prova de sua engenhosidade e determinação. Ele próprio afirmou que é preciso escrever com dignidade. E assim, obras como "O Sonho da Aldeia Ding" e "A Serviço do Povo" (bem inferior em termos de narrativa) são testemunhos da sua coragem e compromisso em abordar temas difíceis e importantes, oferecendo uma visão crítica do governo chinês e suas práticas. A resiliência de Yan Lianke inspira muitos e reafirma o papel essencial da literatura como meio de resistência e reflexão social.