Súditos do Reino
Netos no dia da criança
Nossos dois netos chegaram à nossa casa no sábado, vestidos em seus pijaminhas, prontos para dormir na “casa da vovó” e acordar cedo para a programação especial do Dia das Crianças. Fomos tomar café na padaria e seguimos para uma loja onde os meninos escolheriam os seus presentes.
Como foi a primeira vez do caçula Ricardo na Megacasa, eu o acompanhei na caça ao presente com redobrado interesse. Depois de uma longa procura, o pequeno encontra um caminhão com vaquinhas e cavalinhos. Pronto. Abraça-se ao presente e me acompanha ao caixa.
Em casa, a avó preparou o prato preferido do neto mais velho – asinhas de frango ao forno, que ele havia solicitado por serem “muito deliciosas”. A manhã de domingo se passa entre o tradicional almoço de família e o barulho das crianças em torno dos brinquedos.
Após o almoço, levei um susto ao ver o Ricardo aos soluços. É que a mãe havia decidido deixar o carrinho novo na nossa casa. Agarrado ao brinquedo ele chorava copiosamente. Precisei negociar com nossa filha para deixá-lo ir com seu caminhão e bichinhos.
Depois que todos se foram, a casa voltou à sua calma habitual.
Refletindo sobre as alegrias desse dia especial, foi difícil não lembrar da minha infância de poucos carrinhos e muito menos afetos.
Relendo as memórias da poetisa Adalgisa Nery, enxergo o que foi minha dificuldade de ser criança, para além das carências de brinquedos e, sobretudo, de afetos. A mesma sombra das palavras – a mesma incompatibilidade com a leveza da infância.
Esse “impedimento para o prazer” existia porque me sentia forçado a assumir responsabilidades antes da hora. No ambiente em que eu vivia no Abrigo, tudo me empurrava para me tornar adulto e enfrentar o lado mais sério da vida antes do tempo.
Era raro não ser levado depressa demais para “o curral dos adultos”, para usar a expressão de Alberto Da Costa e Silva. O que me salvava eram as visitas da minha avó Cecília e seu carinho que ativava o meu lado criança.
Ela dependia dos filhos para viver e não tinha dinheiro, mas, mesmo assim, conseguia trazer os inesquecíveis doces nordestinos ou uma rapadura, tão raros na dieta do Orfanato. Mas, principalmente, ela oferecia o seu doce colo de avó, ainda que só por uma ou duas horas na sala de visitas.
Hoje, vendo os netos felizes com seus brinquedos e rodeados de afeto, lembrei-me de quando minha avó me trouxe um Simca Chambord, um sonho de carrinho que foi companhia inseparável por muito tempo nas estradas de terra que fazíamos no quintal do Abrigo.
Gosto de repetir o poeta Alberto da Costa e Silva e seu poema “Curral dos adultos” onde declara:
“Nada quis ser senão criança
por dentro e por fora, criança...”
E se a velhice dificulta mostrar a criança por fora, é por dentro que curto meu lado infantil, atento ao ensinamento de Cristo na célebre passagem do Evangelho: “Deixai vir a mim as crianças e não as impeçais, porque o Reino de Deus pertence a elas”.
A pureza, a disposição natural de ter fé e humildade é o que Jesus nos ensina, ao declarar as crianças como súditos naturais do seu reino.




Que texto maravilhoso. Quem sabe se a ausência de afeto em sua infância não o tenha tornado tão afetuoso, tão verdadeiro na descrição dos seus sentimentos. Você é um exemplo de um homem que conseguiu transformar adversidades em valores. Como digo para alguns amigos, obrigado por você existir.