Shushi e pequi
Japão e Brasil mais próximos da vida concreta e do imaginário
Escrevo esta crônica com notas do meu diário do Extremo Oriente, entre o Natal e o Ano Novo, feliz porque passando esse tempo em paz com a parte da família que mora aqui no Japão. Já começamos, minha mulher e eu, a fazer as malas para a viagem de volta ao Brasil, no começo de janeiro, quando preparo-me mentalmente para a volta ao lar, em Goiás, depois de três meses nesta travessia entre Alemanha, Coréia e Japão.
Como se sabe, nesta época do ano, somos convocados pela mídia e pelos marqueteiros a olhar para a passagem do ano com novos propósitos e celebrar o ano velho com uma espécie de balanço, quando é natural dourar os acontecimentos a nosso favor. Não fujo à regra, e me ponho diante do deus Janus (Jano, o deus mecenas do mês de janeiro), que Santo Agostinho reinventou ao dizer: “Jano tem poder sobre todos os começos; em poder de Jano estão os inícios”.
É sob a égide de Jano, que retomo o meu diário onde, pacientemente, recolho notas sobre minhas impressões e dos escritores que me antecederam nesse tipo de imersão que tem como requisitos de sobrevivência a paciência e desejo de superação diante do Japão que Roland Barthes intitulou de uma “nação fictícia”, tanto são os enigmas a serem decifrados pelo turista.
Mas há quem pense diferente do escritor francês – são os que se apaixonam pelo país, chegando até a fixar residência aqui, como o fizeram o português Venceslau de Morais e Lafcadio Hearn (1850-1904), um escritor britânico que viveu aqui os quatorze melhores anos de sua vida, em Yokohama e Matsue, vindo a morrer em Tóquio aos 54 anos. Para ele, “o primeiro charme do Japão é intangível e volátil como um perfume”.
A ilusão de inalar esse perfume me consome há dois meses, tempo que passei em apartamentos alugados em Machida e Ryoguku-Sumida (Tóquio), tendo feito passeios inesquecíveis a Yokohama e Quioto em companhia da esposa, de genro, filha e neto. Fosse esse um guia de viagem e não um diário, ficariam os sentimentos em segundo plano, cedendo lugar às dicas práticas e às referências a locais turísticos. Uma mirada pela janela do trem-bala, entre Tóquio e Quioto, de onde avistamos o Monte Fuji por alguns minutos é um desses fatos que reafirmam a graça das pequenas alegrias da ilusão de viajar.
Outros momentos se somam a essa imagem do Fuji, como quando vimos, numa manhã iluminada, a soberba imagem do Pavilhão Dourado do templo Kukakujicho, ainda em Quioto. Repeti uma brincadeira que sempre faço em família: “como é bom estarmos aqui; se quiserem monto aqui uma tenda para cada um de nós…” – numa analogia à felicidade (e ao assombro) de São Pedro, diante das figuras de Moisés e Elias, na transfiguração de Jesus, como narrado no Evangelho de Mateus.
Essas pequenas alegrias que aqui divido com você, benévolo leitor, enchem-me o coração viajante de uma doce ilusão, pois são de uma gratuidade não supérflua quando registradas na alma. São momentos assim que provam o certeiro verso de Sônia Maria Santos, ao explorar o espaço aberto da hierofania: “Da alma, a matéria o tempo não gasta:/prossegue, amante, peregrina;/entre a alegria e o assombro…”
Espero que este assombro e alegria diante do novo e do perfume exalado do país do sol nascente venham a nutrir nossa esperança de paz e amor entre a nossa gente e as pessoas de outras etnias, nacionalidades e costumes diversos dos nossos. E entre as mensagens de fim de ano, retiro uma enviada por um amigo especial que me desejava “um ano novo com mais pequi e menos sushi”. E fico me perguntando: por que não os dois? Feliz Ano Novo, caro leitor.
:-)