Reabro um livro antigo do poeta japonês Matsuo Bashô, em minha biblioteca em Goiânia: “Os meses e os dias são viajantes da eternidade. O ano que se vai e o que vem também são viajantes. Para aqueles que deixam flutuar suas vidas a bordo dos barcos, ou envelhecem conduzindo cavalos, todos os dias são viagem e sua casa mesma é viagem”.
Essa forma encontrada pelo poeta japonês do Séc. XVII para abrir um dos cinco diários de viagem é a que me convém ao iniciar esta crônica. De acordo com a tradutora de Bashô no Brasil – a poetisa Olga Savary, os diários são verdadeiros cadernos de esboços, impressões e apontamentos de prosa poética. Com isso, tento encontrar o meu caminho entre os deslocamentos que fiz, nesses três últimos meses, flutuando a bordo de aviões e trens pelas sendas do Oriente.
Assim que começo a meditar sobre este meu diário do Extremo Oriente, com o suporte lírico de noites e dias e sensações múltiplas e intensas, admito que este não se quer deixar fechar com a chegada à casa e a retomada do meu natural: clima, comida, livros, cachorro e gato em torno; campos verdes, jardim florido... Mesmo sem total manejo da forma do renga-haikai, eu ousaria pendurar nos esteios de minha casa um poema, ao modo poético nipônico, nesta volta ao lar em Goiânia:
Chuvarada agora
em minha casa – abre-se
a flor do prazer.
A partida, sabem os meus seis fiéis leitores, foi no dia dez de outubro e o desejo de escrever um diário me atiçava a mente, levando a ler e ver filmes e séries televisivas, para melhor entender a vida e as paisagens que nos esperavam em países de culturas tão diversas da nossa: Coreia e Japão. Foram, pois, as séries televisivas e, sobretudo os livros, meus guias para o périplo que faríamos; mas a vida concreta quem confirmou ou desmentiu o imaginário com suas surpresas e assombros.
Viajantes experimentados, mas idosos, minha mulher e eu escolhemos um deslocamento que nos garantisse descanso na ida e na volta, paradas em Frankfurt que foram um oásis nos efeitos do fuso horário para nosso ritmo biológico. Na ida para Tóquio passamos um mês em Seul e Busan (Coréia), mas o objetivo era passar dois meses com parte da nossa família que está vivendo próximo a Tóquio, em Sagamihara, província de Kanagawa.
Já é lugar comum repetir que viajar é bom, mas que o melhor é voltar pra casa, desde que Frank Sinatra incluiu It's Nice To Go Trav'ling no seu disco Come fly with me, em 1958. Os registros de outros escritores com o prazer e a ilusão (ou ilusões) de viajar são mais concretos do que o diário de Bashô. De todos, retiro o sumo da motivação concreta ou metafísica, mística ou realista; do navio de Albert Camus à aeronave de Temístocles Linhares (viagens similares que refiz a Nova Iorque e a Santiago do Chile), tudo é fantasia e desejo de conhecer o novo.
Do confrade-amigo Nasr Chaul, letrista de nomeada e historiador respeitado, que leu com atenção minhas crônicas desse período desde a subida emoção que tive diante do eclipse lunar em Machida – o assombro com a lua vermelha, no subúrbio de Tóquio em que vivi o primeiro mês no Japão, guardo os votos de boas-vindas: “...da Lua Vermelha ao Amarelo do Pequi. Sejam bem-vindos!”
É uma nota carinhosa em meio à avalanche de notícias desagradáveis que recebi nas últimas semanas pelos serviços de informação de todo o mundo: o homem cordial ligado ao perfil do brasileiro parece ofuscado por uma torrente de discórdia política levada ao paroxismo das reações adversas. Porém, logo que chegamos ao lar, encanta-nos o jardim florido. A primeira refeição é arroz com frango e pequi, lembrando Leo Lynce, nosso modernista avant la lettre. Ele que quando cruzava de trem a fronteira de Goiás, vindo de São Paulo, assim poetizava o momento: “Quando se vem de fora/e salta o Paranaíba, /o trem de ferro tem um ruído diferente, /uma sonora vibração de jazz/ a enternecer a alma da gente...”