Naquela época, o 31 de julho me trazia sempre um bilhete premiado, pois era portador de alegrias ingênuas e juvenis. Essa era a data do aniversário de Sant´Ana das Antas, minha querida Anápolis, onde passei parte da infância e da adolescência e de onde trago memórias anciãs.
Eu me lembro bem do momento mais alto das celebrações. Naquele dia, íamos meus primos e eu a um último passeio das férias: a feira de agricultura e pecuária de Anápolis, ou simplesmente, “Pecuária”. As alegrias que ali vivíamos passavam por assistir aos rodeios e passear pelo parque, vendo os animais e vez por outra nos dando o direito de saborear uma guloseima à venda.
Restavam-me minguados cruzeiros do pouco que eu angariava à época, seja pela generosidade de minha avó Cecília, seja por meu trabalho, vendendo na feira as verduras colhidas da horta do Abrigo. Esta foi uma oportunidade que tivemos de nos exercitar como pequenos empresários, fruto direto da educação que nos proporcionavam Dona Modesta e Sêo Roque, então dirigentes do orfanato, com valores importantes à formação do caráter e da cidadania dos “meninos do Abrigo”.
Eu me lembro bem de passear com meus primos com quem passava férias, aproveitando aquele que era o último dia das “férias pequenas”. Íamos o quarteto de Betos: Agliberto, Luziberto, Euriberto e eu, Bebeto. Eu vivia aquela dúvida boa do que iria comprar com meus trocados restantes: se um algodão doce ou uma maçã-do-amor – depois de ter consumido parte de minha parca bolsa, na aventura de atirar com a espingarda de pressão sem angariar nenhum prêmio...
Assim findava o dia, como se o crepúsculo fosse uma cortina que se fechasse não apenas sobre a data festiva, mas sobre todo o mês de julho de tantas aventuras. Dali surgia a ameaça de um sombrio mês de agosto que nos amedrontava como “o mês-do-cachorro-doido”, época em que teríamos pela frente os banhos frios, as aulas que nos ameaçavam com uma “reguada” da professora em caso de um cochilo e, principalmente, com o terror de ser mordido por um desses bichos soltos, principalmente ali nas ruas da Vila Boa Vista.
Deitado à noite no grande dormitório dos meninos grandes para onde migrei por essa época, esperava o sono que sempre demorava a vir, e ouvia os latidos dos cães, pensando que provavelmente haveria algum doido entre eles. Até que chegava a madrugada e sua melancolia, o mês de julho e seu ocaso.
A chamada verdade poética afirma ser a infância nossa maior fonte de inspiração para toda a vida. Recordo que essas pequenas alegrias só nos são possíveis antes de sermos levados a “entrar no curral dos adultos”, como disse o poeta Alberto da Costa e Silva no seu belo poema “Hoje gaiola sem paisagem”, donde foi extraída a pepita que carrego comigo:
“Se não se têm esses olhos de infantil verdade, todas as cousas nos enganam, tornam-se as palavras sem carne com que construímos a árida abstração que é o curral dos adultos”.
É, pois, seis décadas passadas, que essas lembranças me trazem de volta as fascinações e agruras daquele pequeno paraíso situado em Anápolis.
É ali que está plantada minha infância, é dali que me retorna a poesia, como neste trecho de “Infância”, do meu primeiro livro, 1985 (*):
“Sonho a infância em Anápolis,
no Abrigo, no orfanato —
à espera do almoço cheirando
ao trigo da Aliança para o Progresso...”
Por tudo que aprendi, eu digo a você, benévolo leitor:
“Nada é narrativo na poesia -
um pátio é um pátio
e um quintal, sementeira da memória.”
(*)trechos do meu primeiro livro de poesia - Frágil Armação, 2a. ed., Caminhos, 2017)
Grata pelo texto.
Memória são nosso maior legado.
Estou como você amigo, semeando memória.
Compartilho com louvor!