Passei alguns dias em Pirenópolis, cidade histórica de Goiás, à guisa de descansar do estresse que foi colocar a Biblioteca do Futuro no ar. Na verdade, não descansei, mas voltei como se tivesse recarregado energias para uma última milha.
Acho que foi Marcel Proust que disse que quando entramos no nosso quarto de dormir é como se entrássemos num segundo apartamento (eu vivo em casa, e não entendo isso, mas meu pequeno recanto - o ninho de amor é um pequeno apartamento na casa inteira!). Quando estamos no hotel, adentramos um mundo diverso do que o sono nos espera, do que os sonhos nos esperam, mas sempre nos esperam…
Encontrei novos significados para os sonhos no livro do escritor japonês Yasunari Kawabata (“A casa das belas adormecidas”, sugestão de leitura do amigo Mariel Reis) — sugestões que nenhum psicólogo ou escritor tenha jamais conseguido me comunicar.
Kawabata pintou para este leitor naquele belo volume (que está em sua 9a. edição, 2019, Estação Liberdade, trad. Meiko Shimon) o que seria seu “olhar derradeiro” (matsugo no me), contando a história do velho Eguchi que se deleita visitando a casa do título do romance, onde dorme com meninas que em sono profundo não reagem à sua presença, propiciando-lhe, no entanto, uma espécie nova de prazer que desperta a sexualidade do idoso pelo olhar e sobretudo pela reflexão sobre o corpo da mulher e sobre si mesmo. Embora viva meu 67o. ano de vida não me sinto com este matsugo no me…Por acaso, tenho a mesma idade do personagem principal, as tais 67 primaveras.
Este olhar de um homem que sabe que tem pouco tempo para viver e desfrutar os prazeres do sexo, segundo consenso da crítica literária, se transformou em Kawabata numa escrita “capaz de descrever com meticulosa concisão as profundezas da alma feminina e revelar o corpo da mulher em mais sutil esplendor”.
O autor demonstra uma capacidade muito grande de observar o objeto do desejo que são as meninas adormecidas disponíveis para o prazer dos velhos. Segundo o amigo de Eguchi, Kiga, que lhe dera informação sobre o local, o lugar era para ser visitado “sempre que o desespero de envelhecer se tornava insuportável.”
Não desenvolvi esse olhar sutil, mas me deliciei com as aventuras de Eguchi, similares em muita coisa a outro romance japonês - “Diário de um velho louco”, de Jun´ichiro Tanizaki.
Não desenvolvi esse “olhar sutil” do autor, porque os acontecimentos e as coisas me atropelam, me cegam; mas, às vezes, os sonhos recuperam boa parte dessa capacidade do olhar. Nem sempre são sonhos bons, e mesmo assim recuperam episódios vividos na infância ou juventude (e até mesmo no presente) desenhando situações de enorme clareza, de modo que ao sair do sonho, tem-se uma certa sensação de alívio ou de penitência cumprida.
As recordações do passado, também para mim, tal como para o personagem central de Kawabata (o velho Eguchi) têm esse condão.
Recordo de dois episódios que retornam ao protagonista: 1. o cheiro de leite dos bebês da família que ele carregou consigo para um encontro com uma gueixa que encontrara quando moço; e 2. uma mancha de sangue ao redor do bico do seio de uma amante que ele tivera na juventude, mancha esta que ele sugara suavemente sem causar dor à garota.
“Era estranho que as recordações desses dois incidentes surgissem naquele momento, pois tinham acontecido num passado muito distante. Não era possível que aquelas recordações secretas pudessem ter provocado a impressão do cheiro de leite na garota adormecida. Contudo, pensando melhor sobre o assunto, mesmo que se falasse de passado distante, talvez, no ser humano, memória e reminiscências não pudessem ser definidas como próximas ou distantes unicamente por ser sua data antiga ou recente. Pode acontecer que, mais do que o dia de ontem, os acontecimentos da infância, sessenta anos atrás, tenham ficado guardados na memória e fossem recordados de uma forma mais nítida e mais viva. Isso não acontece com frequência na velhice? Além disso, não haveria casos em que os acontecimentos da infância contribuiriam para formar o caráter e dar direcionamento à vida de uma pessoa?”
Mas não é de recordações que desejo falar e sim de sonhos. Ao “mergulhar rapidamente no abismo do sono profundo” (para usar a expressão de Eguchi), estamos quase sempre desejosos de realizar sonhos impossíveis, desejamos sonhos bons. Deitado ao lado de uma jovem que dorme profundamente, o velho Eguchi sabe que o momento equivale “à felicidade de se encontrar no paraíso”. E mesmo quando uma garota experiente fala durante o sono, é o sonho que persegue a ambos. O sonho real e o pequeno pesadelo que faz a jovem chamar pela mãe: “Mamãe! - chamou a garota, como num grito contido. — Oh! Oh! A senhora vai embora? Por favor, perdoe-me, perdoe…”
Ainda bem que não sonho tanto com minha genitora e nunca tive a chance de chamar alguém de Mamãe. No início do meu casamento, acontecido há 46 anos atrás, eu achava engraçado e quase infantil minha mulher (à época na casa dos 20 anos) chamar a mãe de Mamãe. Depois, superei isso e comecei a achar bonitinho, como dizem as mulheres. Apaixonei-me por minha sogra-mãe, como step-mommy, dediquei um livro a ela. Foi o colo que nunca tive. Volto a esse assunto tanto, que já irritei uns dois ou três leitores que me querem falando de crítica social, de política e não das questões mais íntimas que eu tenho trazido, quinzenalmente, para minha coluna de crônicas.
Sou muito Mário Quintana nesse aspecto:
Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente…E sei apenas do meu próprio mal,Que não é bem o mal de toda a gente,
Mas permita-me, benévolo leitor, retomar o fio. Trata-se do sonho ruim.
Em Pirenópolis, sonhei que estava morto. Sim, como a “bela adormecida” do Kawabata, acordei chamando por socorro, mas o nome que me veio não foi de mãe, senão de santo… O morto estava muito tranquilo por não saber de sua situação.
Alguém chegava perguntando-me:
- Vai demorar muito a descer? e eu:
- Descer pra onde?
- Para o lugar certo - dizia o anônimo simpático e cordial.
- Não sei como é o processo aqui…
- É, tem que descer… Hades, purgatório ou o que seja. É assim.
…
Eu me mostrava bem tranquilo naquele “sonho (nem tão ruim)”. Também não via nenhum preparo para a descida. Então, tomei tempo para olhar em volta e havia muitos vestidos, principalmente na cor verde (ao acordar pensei naquela coisa, creio Jungiana de que não há cor nos sonhos, mas eram verdes os vestidos). Eram vestidos (ou saias, nunca sei ao certo o que é o quê - eram vestes de mulher, muito semelhantes às de minha mulher). E eu passeava por elas, descalço, tranquilo, “sem pressa de descer…”
Acordei. Não estava senão com sede. Muita sede.
Voltei a dormir.
Lembrei-me de um livro inteiro de Georges Bernanos (Um sonho ruim) que li em 2012, na tradução de Pedro Sette Câmara. Ao voltar à casa, fui lá achar o trecho que me causara a lembrança logo ao acordar e contar o sonho à minha mulher:
“Às vezes, nos sonhos ruins, você tem a ilusão de uma caminhada interminável, com desvios numerosos e complicados, seguidos de uma fuga sem propósito por entre uma multidão muda que se abre à sua passagem, mantendo à sua volta uma zona intransponível de espera e silêncio.” (Bernanos, Um sonho ruim, p.147, 2012)
Não creio que houvesse sinal de uma bela adormecida ao meu lado, tampouco de uma “multidão muda” que se abrisse à minha passagem. Eu apenas caminhava no sonho com uma tranquilidade impressionante para quem “tinha que descer”. E isso é tudo.
Pirenópolis vivia o tempo das Cavalhadas. A celebração de Pentecostes. O Espírito Santo guardava a cidade como o grande Consolador. É tudo que tenho a lhes dizer hoje.
…
Pirenópolis e mais
Brilhante! "Questões sociais" tem demais quem debata e por elas se bata. É nos mais íntimos caminhos que se encontra a poesia que, não raramente, inclui questões sociais.
Obrigado @Nelson Castro, amigo Nelsinho de tão longa data e com amizade sempre renovada.