Pássaros quase mortais da alma
Reflexão sobre a melancolia
O que dizer sobre a melancolia quando ela reaparece? Ao tentar responder, recordo meus dias da juventude, recém-chegado a Goiânia.
Naquela época, achava a cidade enorme, depois de viver tantos anos no orfanato em Anápolis, longe do intenso movimento urbano da capital. Agora, era diferente.
Já havia conseguido vaga na Casa do Estudante Universitário e um emprego melhor como professor num colégio de segundo grau em Campinas.
Tudo fluía em um ritmo intenso, uma balada entre os deslocamentos de ônibus, o almoço no “bandejão”; as tardes divididas entre a biblioteca e o colégio onde ensinava Matemática e Física.
Era um tempo em que tateava tudo, em busca de sentido e propósito, meio tonto na nova cidade que desejava domar.
Ainda não havia tempo para namoro ou diversões.
No pouco tempo livre, ouvia programas populares no rádio – como o de Barros de Alencar e, ao fim da tarde, “Tonico e Tinoco na beira da tuia”. À noitinha, quem me embalava o sono era Eliakim de Araújo com “Tap é a dona da noite”.
Vivia como o personagem-heterônimo de Fernando Pessoa – Bernardo Soares, ainda sem “a consciência do céu, pois há dias em que o não olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui: nuvens...” Como quem não vendo o céu, ao se dar conta de mim, já a melancolia havia aberto uma porta para a tristeza, a solidão de um ser que, mesmo andando em bando, continuava só.
Os livros que tomava emprestado da Biblioteca da Universidade eram companhias inseparáveis. Guardo com afeto “Elegias de Duíno”, do poeta austríaco Rainer Maria Rilke, um livrinho que me socorre quando esse sentimento estranho me abate. À época, lia sem cansar o poeta Rilke, no recreio, no ônibus e às vésperas do sono. Em busca do anjo, o poeta me dizia: “todo Anjo é terrível (...) Ai de mim! eu vos invoco, pássaros quase mortais da alma, sabendo quem sois...”
Nos fins de semana, não tendo a quem visitar em Goiânia, fugia para Anápolis, em busca dos primos ou irmãos de criação do Abrigo. Esse atavismo me levou a muitas vezes voltar com algum mimo, porque ali os que me amavam sabiam que algo não ia bem na nova morada.
Era tempo de mudanças, em que certamente a companhia de pessoas amadas poderia fazer bem ao jovem adulto inseguro e melancólico, em meio a uma intensa metamorfose.
Numa dessas viagens a Anápolis, retornei com um disco dos Beatles da minha irmã adotiva Eleusa. Viajando em pé no ônibus de volta a Goiânia, com aquele tesouro de vinil debaixo do braço, via a maçã verde em destaque, quase esquecido de que morava sozinho, sem um ente querido a quem mostrar a fantasia da viagem dos jovens músicos ingleses.
Só repetia o má-má-má... sonoro da onomatopeia gerada com a palavra “mind” cantada na música “Back in the USSR” pelos Beatles, no som quase intraduzível “That Georgia's always on my mi-mi-mi-mi-mind”. Aquela Geórgia está sempre em ma-ma-ma-ma....mente). Anápolis era minha Geórgia. Por um tempo, a música me fazia –, ontem como hoje, esquecer do aluvião que a melancolia sempre me causa.




Só para situar melhor a ilustração deste post, a fotografia é do monumento às 3 raças, de autoria da artista plástica Neusa Moraes. A obra, inaugurada em 1968, é um dos mais conhecidos símbolos da capital goiana e representa a miscigenação entre as etnias branca, negra e indígena na formação do povo brasileiro.