O menino das fotos
Crônica de memórias
Quando menino, vivendo no orfanato, nossos diretores nos fotografavam para enviar as fotos aos padrinhos da missão United Brothers. Em troca, a meninada ganhava presentes.
Ainda tenho na memória a minha foto em preto-e-branco, com uma enxada, misturando massa de pedreiro e que me rendeu um marcador de Bíblia, lindíssimo e que acompanhou minha jornada de leitor cristão.
Se antes eu era apenas fotografado, nos anos 1970, quando a Kodak espalhou suas câmeras Instamatic, com o cartucho de filme já pronto para uso, esse entretenimento entrou de vez no meu cotidiano.
Já morando fora do Orfanato, comprei uma pequena máquina amarelinha, e podia fotografar primos e, principalmente, as primas. Bastava mirar, apertar o botão e confiar que, semanas depois, no retorno do laboratório, a memória viria revelada em papel brilhante e com pagamento em suaves prestações.
Aquela caixinha simples transformou meus momentos com os primos em Taguatinga em capítulos guardados e compartilhados. Assim fui criando o hábito de construir álbuns que eram ao mesmo tempo íntimos e coletivos.
Cada clique da Instamatic era a promessa de deter o tempo, de segurar no pequeno álbum do Fujioka uma parte do mundo real que se esvaía e do efêmero de minha vida de jovem adulto solitário.
Rever as fotos era um acontecimento, porque nem todas as 12 poses se salvavam...
Os anos se passaram e meu amor pela fotografia resistiu à faculdade de jornalismo e ao curso de revelar fotos em preto e branco.
Minha apreciação se manteve, mesmo quando percebi que as fotos sobre a pobreza e o abandono nos Trópicos eram as que mais davam dinheiro aos seus autores.
Já casado, ganhei de presente de aniversário uma Pentax K1000 que passou a me acompanhar nas viagens da família. Era uma máquina pesada e exigia sacrifício para ser levada nas viagens, mas garantia alta qualidade e simbolizou o primeiro passo em direção ao olhar consciente, à fotografia como arte e ofício.
Hoje, minha mulher e eu costumamos registrar nos iPhones os detalhes dos lugares que visitamos, como fizemos em nossa última viagem para a Sicília, onde a natureza exuberante da ilha nos transportou para a juventude, provocando-nos desejos de obter boas fotos dessa experiência de turistas idosos.
No entanto, sempre que conferia a qualidade da imagem, concluíamos que nem o melhor software de captura era capaz de registrar toda a exuberância e as cores vívidas da ilha. O iPhone captava toda a luz, mas não a alma da paisagem.
Costumo montar um álbum impresso e, passadas algumas semanas do retorno, tenho a alegria de folheá-lo para recordar, o que só na memória posso fazer com alguns instantâneos do passado de adolescente ou jovem adulto.
Nas imagens passadas, faltou sempre algo maior: não havia nelas pai ou mãe para me enquadrar no retrato, só a infância órfã tentando caber na moldura. Por isso, recorro à poetisa Adélia Prado, com esse instantâneo de família:
Quando minha mãe posou
para este que foi seu único retrato,
mal consentiu em ter as têmporas curvas.
Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto
que uma doutrina dura fez contido (...)
Seria um retrato triste
se não visse em seus olhos um jardim.
Não daqui. Mas jardim.




Obrigado por compartilhar, Rafael.