Sabem os que me amam (e são poucos) e os que me detestam (número que desconheço, mas penso são poucos e miúdos) do meu hábito de ler autores de um local para onde pretendo viajar, mesmo em revisita.
Este é agora o caso da América, a começar por Nova Iorque e adentrando ao estado de Maryland, onde estão pelo menos dois dos quatro motivos para esse deslocamento tão longo.
Pois bem, na primeira vez que fui à América foram meus guias o nosso imenso Joaquim Nabuco e o francês Albert Camus. Foi lindo e repeti a viagem muitas vezes, seja por imposições do trabalho, seja pela vida da filha que se estabeleceu na América.
É chegada a hora, pois, de viajar à deriva como um Guesa Errante.
Talvez por isso, Fal, tenha sonhado com um poeta. J. De Sousândrade, que errou pelo mundo. Nascido no Maranhão em 1832, nosso Joaquim voltou das andanças para falecer em sua terra em 1902, “ao cabo de prolongadas andanças pelo mundo”. Romântico não aceito pelo público de sua época que preferia Casimiro de Abreu, Sousândrade é mesmo um “sismo de vibração acima da curva acústica de sua (dele) época” - como acertadamente dizem os irmãos Campo em “Revisão de um processo de olvido”.
Por absoluta preguiça, copiei esse trecho (do meu Instragão) para que vocês se deliciem com o poeta.
Baixei da estante esse livro, que é a segunda edição dos irmãos Campos que, de forma didática, reabilitaram um romântico que, por seu "sismo de vibração acima da curva acústica da época...ficou à margem".
O errante poeta maranhense nasceu em 1832 e faleceu em 1902, "ao cabo de uma vida aventurosa e de prolongadas andanças pelo mundo...”
Essa página de O Guesa foi escrita em Nova Iorque em 1876... Pareceu-me sempre que eu nada devera dizer em defesa do Guesa Errante, transcrevendo apenas a opinião contemporânea, que o justificasse ou condenasse. O poema foi livremente esboçado todo segundo à natureza singela e forte da lenda, e segundo à natureza própria do autor. Compreendi que tal poesia, tanto nas ásperas línguas do norte como nas mais sonorosas do meio-dia, tinha de ser a "que reside toda no pensamento, essência da arte", embora fossem "as formas externas rudes, bárbaras ou flutuantes" O Guesa nada tendo do dramático, do lírico ou do épico, mas simplesmente da narrativa, adotei para ele o metro que menos canta, e como se até lhe fosse necessária, a monotonia dos sons de uma só corda; adotei o verso que mais separa-se dos esplendores de luz e de música, mas que pela severidade sua dá ao pensamento maior energia e concisão, deixando o poeta na plenitude intelectual - nessa harmonia íntima de criação, que experimentamos no meio do oceano e dos desertos, mais pelo sentimento que em nossa alma influem do que pelas formosas curvas do horizonte. - Ao esplendoroso dos quadros quisera ele antepor o ideal da inte-ligência. Na modéstia pois do Guesa Errante, as "galas e formosuras do artista, a enfeitar a idéia" tanto, seria nocivo à sua mesma idéia. Além disso o autor creu sempre que todo poeta, sob pena de escravidão e morte, deve ser o que ele é, e não o que o aconselham para ser. Nocivo à nudez, ao sentir profundo, à longa harmonia de uma lenda em doze can-tos, fora esse deslumbramento das formas, que tão necessário é, tão belo é nos poemas-romances de V. Hugo — sombras e clarões fascinadores, melodias de Bellini, que nos arrancam a alma; porém, momentâneas.
O Guesa das primitivas eras, Senhores, tem direito à calma, à velharia dos tempos de Salomão (...)
(…) roupagens e adornos, graças e tesouros, são sem dúvida grandes dotes de muitas princesas; porém de poucas será o corpo belo, sadio, forte, e a alma com a dor da humanidade e com a existência do que é eterno.
Deixemos os mestres da forma — se até os deuses passam!
É em nós mesmos que está nossa divindade. Não é pelo velho mundo atrás que chegaremos à idade de ouro, que está adiante além. O bíblico e o ossiânico, o dórico e o jônico, o alemão e o luso-hispano, uns são repugnantes e outros, se o não são, modificam-se à natureza americana. Nesta natureza estão as próprias fontes, grandes e formosas como os seus rios e as suas montanhas; ela à sua imagem modelou a língua dos seus Naturais — e é aí que beberemos a forma do original caráter literário qualquer que seja a língua diferente que falarmos.
O Guesa, tendo a forma inversa e o coração natural do selvagem sem academia, aceita-o assim mesmo - por espírito de liberdade ao menos, e porque ele vos ama, e porque ele tem um fim social e porque "eu cantarei um novo canto, que ressoa em meu peito: nunca houve canto formoso ou bom que semelhasse a nenhum outro canto".
Sendo então impossível de mim o que reclamam, e apenas possível o que ofereço à minha pátria, acrescentarei para terminar este assunto, que: eu continuo. Continuo; ainda que sem a ciência do bem-agradar, o que me fora gratíssimo, e tão-só com a consciência de que todas as forças úteis da minha existência aí serão empregadas - pudessem os melhor • dotados seguir o meu exemplo! — Não faz mal. Nem as coroas deixam de ser coroas pelos espinhos que trazem; e o pungir destes como que até aumenta a frescura das rosas, que com eles vêm de envolta.
Aqueles a quem pareceu a narrativa não ir de acordo com a lenda, por via do Suna, direi, pois deve-se uma palavra de crença a cada dúvida, que só a diferença é ter sido a antiga estrada talvez de poucas milhas apenas e na planície, e ser a moderna estrada ao em torno do mundo, sem que a verdade do assunto nada sofra com isso. E de mais, qualquer poderá seguir cientificamente a linha itinerária que é o Suna da peregrinação; e o poema há de ser no fim acompanhado do seu mapa histórico e geográfico.
A nossa música e os nossos literários esplendores decerto que transportam e deslumbram os sentidos, mas também adormentam o pensamento, afrouxam a idéia do homem. Sons e perfumes, flores e fulgores
...por vezes; e mesmo porque nada há de novo embaixo do sol, tem o direito de ir antes natural do que sobrenaturalmente; filho varonil das terras virgens do equador, e não régio-doura-do Oriental: ele é solitário e verdadeiro.
A palavra nudez vê-se que foi acima empregada no sentido moral, pois o Guesa andara vestido, e até revestido, como vítima que era do Sol.
Amo a calma platônica; admiro a grandiosidade do Homero ou do Dante; seduz-me a verdade terrível shakespeareo-byrô-nica; e a celeste lamartiniana saudade me encanta. Ora, todas estas generosas naturezas não me ensinaram nunca a fazer verso, a traçar os contornos da forma, a imitar vox faucibus o seu canto, porém a uma coisa somente: ser individualidade própria, ao próprio modo acabada — enamorada e crente em si própria.
Ser absolutamente eu livre, foi o conselho único dos mestres; e longe de insurrecionar-me contra eles, abracei de todo o coração os seus preceitos. Pode, aquilo que for feito, ficar imperfeito, e será, talvez; mas tenho que estes adorados, mestres nunca amaldiçoarão ninguém por lhe haverem os céus dado asas de ferro em vez de asas de ouro — contanto que voem elas em firmamento distinto e não derretam-se aos raios solares. Deixem-nas pois à sua forma original: forma, que é o traço deixado pelo pensamento, e que vereis ainda ser a única absolutamente verdadeira: poetry is the only verity - the expression of a sound mind speaking after the ideal, and not after the apparent... the fault of our popular poetry is that it is not sincere... In a poem we want design, and do not forgive the bards if they have only the art of enamelling.
We want an architect, and they bring us an upholsterer'.
É porque me quer parecer a falta de ciência e de meditação o motivo da nossa literatura não ter podido ainda interessar o estrangeiro. Até a nossa ortografia portuguesa não se entende entre si; a nossa escola não é nossa e nada ensina aos outros; estudando os outros, tratamos então de elegantizá-los em nós, e pelas formas alheias destruímos a escultura da nossa natureza, que é a própria forma de todos. (...)
Vais ler "Manhattan Transfer" pra esta viagem então?