Ao abrir esse jornal, desejo que você, benévolo leitor, possa dividir comigo uma Graça: a de celebrarmos mais um Natal em família, gozando de saúde e paz . Ecoam em minha mente as palavras de um antigo cronista português (Ramalho Ortigão), que se recordava do Natal de sua infância no Minho assim: “Tudo o que há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a família, estava aí tudo reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada e satisfeita. Não é tudo?”
Penso no meu Natal e para a doçura a minha alma se volta, como nos versos esquecidos de Manuel Bandeira. Expresso minha gratidão por passar este Natal de 2022 em Tóquio, em meio a uma realidade bem diferente da nossa, planejando a Noite Santa em companhia da esposa, genro, filha e neto, que vivem este período no Japão.
Renasce no cronista aquela esperança que inundou Edith Stein, judia convertida ao Catolicismo e que escreveu sobre o Natal como nenhum teólogo poderia fazê-lo, porque escreveu com simplicidade: “o fascínio do Natal atinge a todos, mesmo os que pertencem a outras religiões e os que não creem, aqueles para quem a história do Menino de Belém não diz nada.”
A verdade é que diante de tantas expressões desse fascínio de que nos fala Edith, começo a dar um sentido maior ao que vivo aqui no Japão, cuja população cristã é minoritária, mas onde as iluminações se contam às dezenas na região central de Tóquio e se espalham por toda a ilha, em torno aos mercados de Natal, criando um clima de festa e encantamento, envolto em músicas de inúmeros corais, que encantam os viajantes com lindas árvores e vitrines iluminadas feericamente.
Edith Stein (1891-1942) nasceu em uma família judia e, depois de uma juventude de descrença e ateísmo, converteu-se ao Catolicismo. Filósofa e teóloga, Edith foi canonizada com o nome de Santa Teresa Benedita da Cruz, por sua vida devota passada num mosteiro carmelita até ser executada pelos nazistas no campo de concentração de Auschwitz. A história da conversão desta mártir católica pode ser conhecida em “A ciência da cruz”.
Mas é um olhar de esperança que Stein nos resgata. É reflexão que me domina nesta semana, quando “uma corrente cálida de amor imunda a terra e todos preparam a festa, tentando irradiar um facho de alegria”. Para nós, católicos, essa luz deve ser ainda mais intensa quando voltamos o olhar para a estrela de Belém, à manjedoura, onde se destaca a imagem da Sagrada Família, entre os animais de um estábulo simples porque não havia um lugar para a vinda do Menino-Deus. O poeta latino Virgílio, 40 anos antes da vinda do Messias, previu esse fato com esses versos considerados proféticos:
“Terá a vida dos deuses o menino, que os verá
no meio dos heróis, e será visto em meio a eles,
regendo com as virtudes de seu pai um mundo em paz”.
Na leitura da Missa do Galo, ao ouvir que “o Verbo se fez carne”, devemos reconhecer que o fascínio do menino na manjedoura representa a presença de Deus entre nós para mudar o curso da história. “Essa luz descida do céu opõe-se à noite do pecado, do mal”, diz Edith, ligando o intrincado mistério do Natal ao mistério do Mal. O menino que veio para nos salvar tornou-se a vítima expiatória que morrerá na Cruz por nós, pecadores.
O poeta brasileiro Murilo Mendes recria isso em um poema de Natal, onde se lê: “meu ser é uma vasta estrebaria onde se vêm abrigar todas as impurezas da terra desde os meus mais remotos ancestrais”. E encerra em ato de contrição – “…me ofereço em sofrimentos e poemas pelo resgate dos poetas cuja fé vacila, em união com todas as hóstias que se elevam diariamente nos altares de todos os recantos da terra, apresentadas a Ti, ó Deus, para honra e glória do teu nome…”.
É poesia universal, humaníssima poesia do Natal que ilumina sombras interiores e nos revela o essencial: a árvore, as luzes, a música e o presépio só devem reforçar essa centralidade.