Esta crônica não tem compromisso com o presente, nem com uma ou outra circunstância que possa sitiar o cronista enquanto a escreve ou a você, leitor, quando estiver a lê-la – e o tempo já terá consumido a ânsia de escrevê-la. O tempo se estará consumindo agora que você a lê, similarmente a quando foi composta.
Ora, sabemos por Santo Agostinho que “o tempo é a imagem móvel da Eternidade”. Nada haverá, pois, que possa resistir à memória fugaz da crônica que não seja o olhar do Eterno e para o Eterno.
Tudo flui, ensinava Heráclito de Éfeso, retomado pelo filósofo (e bom cronista) Vicente Ferreira da Silva. E tudo flui porque “existir é coexistir”. Tudo flui porque “uma só coisa é em nós o vivo e o morto, o desperto e o adormecido, o jovem e o velho; unicamente que ao inverter-se umas resultam as outras e, ao inverter-se estas, resultam aquelas.”
E é nesse “fluidismo absoluto” – recorda-nos Ferreira da Silva, muito antes de Bauman, que “todas as ilhas do ser [são] dissolvidas no rio ilimitado do vir a ser”. Os coros das tragédias, ao tempo de Heráclito, os oráculos misteriosos e os búzios lançados ao nosso redor, nenhuma Sibila antiga ou hodierna dão conta com mesma eficácia quando é a Sabedoria o que se pode arrancar à Poesia do vir-a-ser, à passagem do tempo diante de nossas rotinas e retinas cansadas.
Ao homem do século XXI a quem pouco importa uma Paidéia e em que a Poesia não passa de um divertimento reservado a uns poucos; ela mesma Poesia, quase um ritual para iniciados, também pouco resta-nos para além da ansiedade que a todos domina.
As iluminações dos poetas, o visionarismo (e o exemplo) dos Santos e dos heróis situam-se num patamar de importância significativamente maior para todos nós; de Heráclito, a Vicente Ferreira da Silva – eis o caminho para os homens que ainda são capazes de ter Esperança, nesta era sombria, mais, muito mais do que buscar incessantemente as “pálidas abstrações de nossa ciência vã ” (cf. V.F.da Silva).
Numa das mais ricas fases da Idade Média (o século XII), o Santo que em si resumiu o século – Bernardo de Claraval relia o livro Sagrado e anotava em seus sermões: "Porque te deprimes, ó minha alma e te inquietas dentro de mim? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: Ele é minha Salvação e meu Deus". E respondia poeticamente:
“Este é o meu desejo quando o erro rouba nossa razão,
a angústia toma nossa disposição e cada temor
se apossa de nossa memória.”
O desejo de São Bernardo é que aos monges aconteçam essas coisas que sempre desejamos e ele desejou a seus filhos (que é como carinhosamente os designava Bernardo); a saber: “uma maravilhosa serenidade, abundante doçura e eterna perseverança que transborda”.
O primeiro desses desejos será realizado pelo Deus da Verdade; o segundo, pelo Deus de Amor e o terceiro pelo Deus Todo-Poderoso.
– Como reunir tais virtudes num só coração humano – a serenidade, a doçura e a perseverança? É indagação natural do meu interlocutor invisível, o que me ronda os textos, por sobre os ombros, sempre a me dar conselhos válidos para a boa consecução dos meus propósitos.
A oração e a leitura do Livro Sagrado, o jejum, a penitência podem prover os dons desejados. No campo do terreno, o que mais se aproxima disso é a Poesia.
Pequenas alegrias que nos são prêmio perene, como este. Tenho diante de mim o livro do jovem poeta e professor de literatura Érico Nogueira (“Quase poética”) – um livro que se impõe diante do leitor como um desafio de aprendizado e comunicação. Sabe o cronista estar diante de um grande, mas sequer sabe tirar da poética deste escritor no vigor criativo da sua quarentena de anos o sumo do saber acumulado.
Sabe-se logo que se está diante de alguém acima da média que pode ensinar porque teve a humildade de aprender. Acima porque tomou a “poesia como Autodescoberta; autoanálise. Autoconhecimento.” Eis-nos diante de um livro de múltiplas possibilidades de aprendizado – da polêmica com Domenek até os estudos sobre a poesia de Leopardi e de Friedrich Hölderlin, da carta de Hugo von Hofmannsthal à “Arte e Moral...” (estudo dedicado ao polêmico e emérito Filósofo Olavo de Carvalho). Eis-nos diante de um escritor a quem tiro o chapéu porque é dos raros que sabem aprender. E a quem, por essa razão mesma de que achou o mestre certo na hora adequada, perdoamos até os excessos e um certo pedantismo – característico dos poetas geniais.
Nogueira plantou-se entre os grandes desde sua mais tenra idade; o homem simples que gosta de futebol e cerveja, bebeu o vinho dos gregos e latinos, olhou de frente, na condição de “protopoeta em seus dezoito anos”, depois de ter pego uma insolação, sob o sol da caatinga em que reside a poesia do modelar João Cabral de Melo Neto; teve a chance de ser pupilo de Bruno Tolentino; de beber na Tradição podendo então escrever uma (Quase?) Poética para o século XXI.
Para Érico, em poesia...bem, há suor em “meio a uma longa e tortuosa tomada de consciência – “melhor ficar quieto...[afinal] “There is no singing school but studying / monuments of its ow magnificence” – o velho Yeats já dizia! E finalmente, Érico Nogueira estreia com uma cara de clássico; que é para onde volto meus olhos, de modo a retirar a poeira da ansiedade derivada do fluidismo absoluto: Hölderlin. O poeta Érico e o filósofo Vicente aqui se aproximam pela via da contradição. Vicente dissera nos idos dos anos 60 que “o pensamento só pode pensar o que foi “aberto” pela palavra desocultante da poesia”.. Logo, eis a síntese no crítico-poeta Érico de “Quase poética”.
O poema transcrito pelo crítico Nogueira como exemplo da “mistura de helenismo e messianismo” intitula-se “Curriculum vitae” e foi traduzido por Érico e incluido no seu livro de estreia (“O livro de Scardanelli”), sob o título de “Envoi”:
Curriculum Vitae – Friedrich Hölderlin
Querendo ser maior, vi que o amor
rebaixa tudo, a cólica nos curva;
o nosso arco não acerta a fruta
se a sua corda não estoura.
Em noite densa, em que não luz a lua,
quando a natura sonha um outro astro,
me achei no fundo Orco, tão bizarro,
tão arredio ao nosso olho:
isso eu vivi. Pois nunca, nunca os deuses
permitiriam que eu vivesse o mesmo
que esses mortais, e que como um covarde
me arrastasse ao rés-do chão:
não, não, que minha boca prove tudo;
a tudo grata então, que ela se abra;
que eu seja um sol, que só de mim dependa
pra levantar, ser tudo ou nada.
Aí está uma amostra do Érico analista-crítico; o que se diz um homem simples, ligado às mais caras tradições brasileiras da cerveja-e-futebol – que é, na verdade, um sofisticado leitor dos clássicos, um poeta-pensador da cultura, um que encontrou uma forma de dizer em meio ao fluidismo que nos envolve a todos – direto da Academia em que ensina (como ensinam Geoffrey Hill e outros poetas ligados ao Ensino). Ele, Érico, que como Wladimir Saldanha e João Filho se inscrevem entre os que, certamente, comporão o cânone deste século XXI.
O cronista reata os bilros do início desta jornada. Exalto a bela aula que está no livro “Quase poética” – humilde no título como no da estreia drummondiana “Alguma poesia”, para dizer aos meus seis leitores:
– Leiam o Érico, poetas! Leiam o Érico, leitores e amantes da poesia! Leiam o Érico, contadores, comerciantes, professores de literatura e de botânica. Leiam-no: é alegria garantida encontrar um poeta-crítico-professor de tão alta estirpe, entre nossos contemporâneos, um que sabe o significado da “maravilhosa serenidade, da abundante doçura e da perseverança que transborda” –; um que sabe ainda se alegrar com os que se alegram; um que confessa padecer de inveja por poucos semelhantes (e quando diz já se faz digno do perdão consolador) como a declarada pelos poetas baianos Wladimir Saldanha e João Filho.
Até a expressão dessa “inveja” parece-nos ser da natureza de uma “mediação externa” (Girard), onde o modelo enseja o conflito, mas fazendo deste motivo de pura especulação intelectual, produzindo Cultura, de uma forma agregadora, aproximando-nos da mímese criadora que gera Civilização (cf. João Cezar de Castro Rocha).
Isso se dá em termos que o torna um invejoso simpático, aquele capaz de dizer sobre o livro “Lume cardume chama” (Wladimir Saldanha):
- Que livraço, pungente, singelo e ingênuo bem neste sentido de que falamos [Érico comentava “As horas de Katharina” e o poema exordial “Adeus”, de seu mestre Bruno Tolentino]. E prossegue na mesma linha: “queria escrever como ele [Wladimir], ah queria, este é um dos melhores livros de poesia que tenho lido nos últimos tempos, ao lado de “A dimensão necessária” do também baiano João Filho (que definitivamente não integra o time dos líricos “puros”, porém).”
É esse poeta-crítico a quem apresento como mestre (para mim maior que o doutor a que tem direito por titulação acadêmica!), mestre no sentido original do que constrói uma Paidéia, daquele que está apto e sabe ensinar), diante de quem nos fazemos aprendizes, apesar da diferença de idade e da vivência, sim sabemos que um poeta assim é capaz de expressar-se com a simplicidade dos nobres: “que alegria ler fulano”; ou: “que feliz fortuna a minha” por ter as primícias da obra de um poeta novo – ou sobre uma obra que lhe é enviada para escrutínio de especialista. Só nos resta, amparado num filósofo e em um santo, saudar o Érico Nogueira que nos premia com sua poética. Salve a poética da humildade nobre que os deuses só aos grandes reserva.
Perdoem-me todos os outros, mas acredito que Érico Nogueira é o maior poeta hj do Brasil. Aquele que une em seus temas e realizações altura, profundidade e feeling numa forma raras vezes alcançada em nossa língua.
Ainda precisa lê-lo. 🙏🏼🙂