Lembranças vestidas num mané-pelado*
Com minha avó Cecília, os olhos de Lia e os doces de Anézia, aprendi a ler...
(*) Crônica originalmente publicada no Jornal O Popular, Goiânia, 04/04/22.
Aí que está, alerta-me o amigo: a lembrança que um idoso guarda dos episódios da infância é quase sempre nuançada, cambiante; apesar disso, não desisto de registrar uma memória muito querida – a de minhas professoras primárias e da experiência que tive ao aprender as primeiras letras.
Vago pelo mundo dos sonhos que é generoso em nos retornar a melhor versão de uma passagem antiga, confirmando que a memória é uma frágil armação e contra ela se arvoram os mais inusitados bólidos mentais da vida moderna, incluindo a queima de arquivos pelo stress ou pela exaustão natural que a idade nos impõe, deixando-nos neste lusco-fusco sobre fatos que não queremos esquecer. De novo, o resgate vem da poesia. Lembro de um poema lido na Porto Alegre onde morei nos anos 1980 –
A Elegia 12 (Os velhos), no livro “A mesa do silêncio” do gaúcho Armindo Trevisan:
Olhos?
Faróis na neblina.
És uma página
ilegível
para a cidade.
Teu ritmo a nutre/com porções de cânfora.
Enfrento essa neblina que os anos acumulam em minhas retinas e esforço-me por refazer o caminho percorrido da casa de meus tios à escola primária em Anápolis. Éramos um quarteto de primos encantados com a cidade, recém-chegados de Garanhuns; e vibrávamos com a novidade da volta à escola.
Aos saltos, pelo canteiro central não nos demos conta da presença de um estranho próximo da gente. Repetíamos a prece que a Tia Luzia nos havia ensinado: “Vamos com Deus, Nossa Senhora...” E o intruso, sardônico emendava: “capetinha atrás, tocando viola...”
Graças a Deus, o santo anjo nos levou em paz à Escola Bezerra de Menezes, onde conheci a pessoa que me ensinaria as primeiras letras – a professora Lia. Ela ficou surpresa com o avanço que minha avó Cecília havia obtido comigo, ensinando-me o bê-a-bá, à moda pernambucana, usando apenas um precário papelzinho com um furo que ela sobrepunha às letras das manchetes do jornal “O Anápolis”, me fazendo repetir as sílabas com ela.
Encantaram-me os olhos verdes da professora e assim pude evoluir muito bem, vindo a ler sozinho em pouco tempo. Tudo isso passou rápido, porque era uma temporada na casa de meus tios, até que a vaga no orfanato fosse aberta – como se deu em breve.
Lá, conheci a minha segunda professora, de quem guardo uma imagem sacrossanta. Era uma senhora baiana de tez amorenada, quase negra, a face afetuosa e maternal — mais do que mera professora. Amei Dona Anézia. Lembro-me de seus ensinamentos e, com muita saudade, dos doces que ela trazia para a sala improvisada de escolinha do Abrigo. De todos o meu predileto era o mané-pelado, como todos os doces, coisa incomum em nosso meio.
Num dia desses, em torno a uma mesa cuja agenda era literária, fui surpreendido com um prato de mané-pelado trazido por uma poetisa local, ela também baiana, que me fez reviver aquele episódio da infância.
Se tinha seus métodos de premiar, Dona Anézia também os tinha para punir. Lembro-me que quando falava firme, todos se calavam à sua autoridade. Fui checar minhas lembranças com as do Eduardo, irmão adotivo de minha geração. Perguntei-lhe se se lembrava de Dona Anézia. “Como esquecê-la?” – respondeu ele. E emendou: “Não sei se você se lembra que um dia ela mandou que fôssemos à frente da sala para fazermos uma leitura e eu, muito tímido, resisti, mas fui; só que não consegui, e ela me deu uma "reguada" na cabeça. E olha que a régua era de madeira...”
Ao contrário do irmão que conviveu com a professora muitos anos, depois desse episódio, não tive a sorte de rever Dona Anézia, mas em sonhos ela me ressurge com um prato de mané-pelado, sem que eu tenha mérito algum em recebê-lo. Ah, doce memória! – apesar de fazer de meus olhos esses “faróis na neblina”, me recompensa generosamente com esta página da minha infância.