"Gerardo — um poeta gigantesco. O nosso Dante." Um dos silêncios mais feios e mais vís da nossa vida literária é o que se faz contra Gerardo Mello Mourão. Foi mais ou menos isso que me disse, ainda ontem, o meu amigo Hélio Pellegrino. Fui visitá-lo e ele me recebeu assim: — "Nelson, descobri um poeta gigantesco (...). Estamos fartos dos livros bem feitos, dos livros interes-santes(...). Mas queremos de qualquer leitura um resultado vital." E se o Hélio Pellegrino descobriu um "poeta gigantesco", eu, antes de conhecer-lhe o nome, caí em transe ou, como se diz em teatro, em "tensão dionisíaca." Minha primeira pergunta foi esta: — "Brasileiro?" E o amigo: — "Mais brasileiro do que eu, mais brasileiro do que você". Nova pergunta: — "Quem?" Veio o nome por extenso, como num cartão de visita: — "Gerardo Mello Mourão". Era um dos raros autores vitais do Brasil. Ainda insinuo a dúvida: — "Tanto assim?" E o Hélio: — "É o nosso Dante". Mais uma vez, eu verificava como é antibrasileiro o seu dom de admirar nato. Pudesse o Hélio e só viveria entre coisas admiráveis... Gerardo Mello Mourão não era um nome desconhecido para mim. Certa vez, Abdias Nascimento me falava de seus poemas: — "Você precisa ler. Poeta formidável"... Mas eis o que eu perguntava ao Hélio Pellegrino e ele a mim: — "Por que não se fala em Gerardo Mello Mourão?..."!
Por *Nelson Rodrigues, in "O Globo", 5-2-1969.
E se eu não fosse tão preguiçoso, relataria os mistérios que venho desvendando com leituras (e releituras) dos poemas e da prosa que não conhecia, a não ser a jornalística e a ensaística de “A invenção do Saber” - que confirma a maestria de GMM também nesse gênero.
Há tanto a se dizer de e sobre Gerardo, p.ex., a biografia que ele fez do Santo homônimo, sob o título “O bêbado de Deus”, cuja leitura devo ao amigo César Miranda.
E para não deixá-los sem alguns versos, aí vai o link do portal do professor Antonio Miranda com alguns poemas do Gerardo.
E um bônus, poema transcrito abaixo:
RONDÓ DA PRISÃO DE CAMÕES NO PÁTIO DO TRONCO
Pelas bandas do Rossío
numa taberna de vinhos
guitarras e violões
levaram um dia preso
Um Luís Vaz de Camões.
Foi preso por uma rixas
na Porta de Santo Antão
entre alguazis taberneiros
e fêmeas de ocasião.
Luís de Camões, Luís
fora à taberna da praça
tomar uns vinhos do Douro
dar ares de sua graça
... e quem sabe mais o quê...
Destino meu e do reino
é viver e morrer juntos.
Moro no mar e na terra
nem casado nem solteiro
sou servido em meus serviços
pelas sereias do mar.
De profissão fui soldado
e marinheiro do rei
e o reino sempre chegou
onde eu primeiro cheguei.
Hoje sou cantor das ondas
das velas em seus veleiros
das armas de Portugal
e seus barões cavaleiros”.
Perguntado por seus bens
disse que tinha uma espada
uma lira uma guitarra
e um copo para beber
e que estes bens — sua espada
o copo e a lira — sabia
manejar como ninguém,
nas Índias na Costa d´África
ou nas tascas de gaudérios
entre o Restelo e Belém.
De tudo isso vão dar conta
umas rumas de papel
que irá trazer de Macau
molhadas no sal das águas
em naufrágio no Mecongo;
com seus versos de dez sílabas
limados em boa lima
na língua melhor da terra
de estrofes de oitava rima.
Tinha também umas glosas
em sonetos escandidos
sóbolos rios e mares
na língua de Portugal
e nestes versos guardava
o seu melhor cabedal
e o nome de uma senhora
dona de seu coração
mas não diria este nome
diante duma ralé
no pátio de uma prisão.;
“Agora saiam da frente
que a espada que matou mouros
mata qualquer alguazil”
E pela porta de pedra
abriu caminho entre os biltres,
o fero ferro na mão;
saiu cantando, de volta
à Porta de Santo Antão,
onde esperavam jograis
e vinhos verdes do Dão
os marinheiros das Índias
e as fêmeas de ocasião.
Fortaleza, 10.12.98
(*)Aguardo notícias sobre o livro de Alexandre Sugamosto sobre “Os peãs”.
Já garanti meu exemplar na pré-venda da Amazon.
Gerardo é um gigante. Para mim, a "Invenção do mar" é um dos grandes livros da literatura universal.
Que maravilhoso