Como abandonar um gato
Apud Murakami
Certa feita, Rubem Braga contou sua aventura em Casablanca, aonde chegou “a bordo de um duro avião militar, magro, nervoso, cansado e com a mão direita numa tipoia” e de onde tirou uma sequência de três crônicas que encantam o leitor ainda hoje.
Particularmente, levo uma vida nada aventurosa e absolutamente pacata, então não posso contar com temas de grande e eloquente significado que possam emocionar o leitor.
Porém, um assunto derivado de uma experiência comezinha ocupou meus últimos dias de forma inusitada. É assim, pois, que um velho gato rabugento entra na história.
Nessa época do ano, ocorrem as campanhas de vacinação de cães e gatos. Temos um gato vira-latas que vive conosco há dez anos e, portanto, precisa ser vacinado.
Quando era mais jovem, Lucky se deixava levar numa caixa apropriada ao posto de vacinação, não sem muitos miados de protesto. Mas não oferecia grande resistência para se submeter à agulhada anual do veterinário.
Hoje, a situação mudou e muito.
Há uns três anos, ele se nega, terminantemente, a entrar na caixa e ser meu passageiro até o posto de vacinação. Apelamos para algumas tentativas como colocar a comida dele na caixa de viagem, tentar levá-lo no colo até o carro, mas nada deu certo, incluindo uma armadilha de verdade com a comida dele atrelada a um acionador.
Mesmo com o estômago roncando de fome, o gato passa longe da armadilha.
Sem solução para o impasse, lembrei-me do livro “Abandonar um gato: o que falo quando falo do meu pai” do escritor japonês Haruki Murakami. Sem querer antecipar as emoções da história, digo que as diferenças do autor com seu pai afloram por conta das lembranças da decisão de abandonar um gato.
Ao reencontrar o pai velho, magro e adoentado, Murakami e o pai se lembram de uma história:
“Certo dia de verão fomos de bicicleta até a praia para abandonar uma gata rajada. Depois, a gata voltou para casa, antes de nós, e ficou à nossa espera. Aconteça o que acontecer, dividimos essa experiência, maravilhosa e intrigante. Ainda hoje, lembro com clareza o som das ondas e o perfume do vento que soprava por entre as árvores naquele dia na praia. O acúmulo infinito de pequenas lembranças como essa compõe a pessoa que sou”.
Olhando para o velho gato que nos desafia com sua negativa de ser vacinado, me lembro sempre que ele entrou em nossas vidas por conta de nosso neto Lucas, hoje com 18 anos e que vive nos Estados Unidos.
Foi para ele que compramos esse gato em um abrigo de animais de rua há dez anos.
Lucas tinha chegado recentemente ao Brasil para morar e tinha muitas dificuldades com a língua e a escola pois sempre vivera nos Estados Unidos.
É impossível esquecer o brilho no olhar daquele menino abraçado ao gatinho que seria seu amigo e companhia em um momento delicado de sua infância.
Hoje, como herdeiro do gato, agora velho e cheio de manias, se destacam no coração as emoções como aquele acúmulo que nos diz Murakami: uma camada mais forte e presente da pessoa em que me tornei.




Apenas não o abandone!