Canto de noites insones
Uma ode à amizade
Em finais de semana especiais, algumas crianças do orfanato onde eu vivia tinham direito a alguns passeios, desde que acompanhados por um adulto responsável, ainda que não fosse parente.
Os meus melhores domingos foram com Isidoro, o regente do Coral da igreja Presbiteriana de Anápolis, e a convivência ao longo dos anos nos aproximou de forma definitiva.
Quis o destino que eu não conhecesse meu pai e que Isidoro não tivesse filhos. Assim, nossas carências nos aproximaram e me tornei uma espécie de filho adotivo nesses inesquecíveis finais de semana.
A sua figura masculina compensava o vazio que nenhuma das minhas irmãs adotivas, professoras ou mesmo nossa mãe adotiva, Dona Modesta, poderia suprir. Recordo com desvelo os nossos passeios.
Já tive chance de dedicar uma crônica às virtudes do Isidorinho, a quem exaltei em minhas recordações comparando-o, até pela cor da pele, ao personagem homônimo que aparece nas memórias do poeta Murilo Mendes “Isidoro, ou o preto Isidoro. se diz hoje e sempre Isidoro da flauta”.
Desde então, eu o chamo de “Isidoro do Coral”. E lá do recôndito de minhas memórias mais doces, ele surge regendo um canto em homenagem à amizade que uniu um homem solitário e um menino sem pai.
Ele sempre retorna em minhas lembranças com suas vestes nobres dos cultos, não com a roupa de mestre-de-obras, ofício que também exercia com muita aptidão.
Sua autoridade e sabedoria me guiaram na juventude, em minha jornada de descoberta pessoal. Tal como Hermes que, segundo a mitologia grega, acompanhava os viajantes, Isidorinho me facilitou a transição a um novo estágio de vida.
Foi na garupa de sua Lambreta que fiz pela primeira vez o percurso de Anápolis a Goiânia, para um fim de semana na Capital.
Nessa vinda a Goiânia, a nossa Lambreta foi atingida por um carro, num cruzamento da Araguaia. Do susto, tirou-me o amigo-herói, que com calma me devolveu a confiança.
Lembro também da ida a Campinas, onde ele encontrou o tratamento para as verrugas que me enfeiavam os cotovelos adolescentes. E me lembro, sobretudo, dos retornos ao Abrigo, sempre adocicados: algumas moedas na mão, doces e muitas histórias no coração.
Sua presença e afeto foram cruciais para que eu deixasse de colocar em relevo o descaso com que alguns parentes de Anápolis me tratavam.
Eu ainda me preparava para o vestibular quando Isidoro morreu, vítima de um acidente na obra em que trabalhava – o que provocou nele um AVC fulminante. Não pude comemorar com o amigo a alegria de ter sido aprovado no vestibular e morar em Goiânia como estudante de Física na UFG.
Ao contrário de Hermes da mitologia grega, não havia trapaças em Isidoro. Como meu guia de vida ele me deu a fé e a coragem necessárias para seguir sozinho, para acreditar em mim mesmo e vencer as barreiras que a vida nos impõe.
O canto forte do regente do Coral ecoa até hoje nas minhas noites insones e povoa meus sonhos. Se Charles Dickens deu a Oliver Twist o senhor Brownlow como benfeitor, eu tive Isidorinho do Coral como meu guia que conduziu minha infância órfã a um caminho de esperança.




Que história!