Cacos para um vitral
Para minha irmã Doralice Costa
Em 1980, ainda não tinha coragem de dizer: “vou ser escritor”. Era apenas escriturário da Caixa Econômica, recém-chegado (de volta) a Goiânia, depois de uma temporada no Rio Grande do Sul, onde me firmei como escrivão (não escritor).
Tudo caminhava como dantes, em que nos momentos livres eu lia muito e conhecia todos os escritores e escritoras que me levavam para cima, fugindo de uma rotina àquela época menos estafante do que foi no futuro bancário, até que fugi dali para buscar minha independência financeira e intelectual.
Como sabem meus seis leitores, eu havia escapado de uma infância dura à la Oliver Twist, do Charles Dickens, mesmo sem ter sido vítima de água quente na cara e sem outros revezes maiores, mas com muitas dificuldades superadas.
Não me queixo de nada, a não ser da ausência do pai e da distância da mãe que para mim foi sempre e apenas genitora.
Tudo corria bem no orfanato, que chamávamos Instituto para elevar nossa moral. E foi aí que me tornei adolescente e me vi diante de escolhas.
Queria sair de Anápolis para ganhar o mundo, mas àquela altura o que mais se oferecia de melhor era tornar-me pastor. Fui para o Seminário. O que não durou muito, porque passei no vestibular para Física em Goiânia e pude dizer adeus à vocação nunca confirmada.
Então, em Goiânia, tive oportunidades incríveis. Conheci uma garota que está comigo há 50 anos. Hoje penso que foi um trunfo conhecer a melhor das duas moças da Engenharia – para quem era aluno da Física e tinha aulas em comum com elas.
À essa altura, minha irmã adotiva – Dora – já havia voltado para sua terra natal, Divinópolis e mantinha comigo uma febril correspondência. Suas cartinhas tão bem escritas me traziam um calor diferente do clima de Goiânia. Falavam de um clima serrano e de uma cidade distante de todos os hábitos goianos.
Às vésperas do meu noivado, decidi ir a Divinópolis visitar minha irmã mineira. Foram dias de trem e ônibus. Saí de trem da ferroviária (hoje museu) em Goiânia, em direção à capital mineira e dali prossegui de ônibus até Divinópolis.
O irmão da Dora, portanto, meu irmão adotivo, Lauro, me iniciou na noite de Belo Horizonte, antes de tomarmos o ônibus para a terra de Dora e Adélia Prado.
Eu me lembro de seguir viagem lendo uma seleta de poemas de Cecília Meireles, o que era um hábito (ler poesia) adquirido na Biblioteca do Couto Magalhães, em Anápolis, e jamais abandonado. Lia até que algum balanço mais forte do ônibus me acordava e o Lauro me acalmava. Também rezava muito para que tudo fosse bem até Divinópolis.
Lá chegando, soube pela voz de minha irmã que havia uma poetisa na vizinhança. O nome dela: Adélia Prado. Só posso provar que tudo aconteceu pelo revisor de minhas retinas cansadas e por uma foto em que fácil se identificam um jovem magricela ao lado de uma morena linda (Dora e eu).
Dois anos depois, já casado com Nina, Dora me envia um livro de Adélia (Cacos para um Vitral) em que consta esta dedicatória: “Para o Adalberto vão estes `cacos´. Espero que goste deles e me queira bem. Seja muito feliz! O abraço melhor da Adélia Prado. Divinópolis, 23.12.80.”
Seguiram-se outros livros sempre com esse “abraço melhor” da poetisa Adélia que passei a ler meticulosamente e com paixão. Em 1986, cheio de insegurança, lancei um livrinho com apoio do escritor Brasigóis Felício e do editor amigo Anatole Ramos – sob o título Frágil Armação. Citei Adélia. “Meu destino é miúdo/é um caquinho de vidro na poeira”.
Aquele menino continua acreditando nisso e sonhando alto, como no canto Xavante, citado como epígrafe:
“Com o sono eu sonho
Durmo e sonho
Os outros vão cantando
Eu sonho para tornar felizes
Os outros que cantarão meu sonho.”
Neste julho de 2025, trouxe a obra de Adélia ao palco do Sesc no evento Vozes Femininas. Foi uma alegria e um alento ao velho escriba que continua sonhando muito.
A crônica no original.



