A vida é um fragmento da paisagem
Crônica publicada no Jornal O POPULAR de Goiânia (29/1/2024)
A viagem parece marcar a vocação da família Queiroz, que não consegue olhar para uma mala sem pensar em algum destino. Foi assim que, ainda antes do final da pandemia, Helenir e eu decidimos refazer a rota de uma viagem decisiva em nossas vidas – a mudança para Porto Alegre, em 1975.
Pode-se ler no diário dela: “estamos nos organizando para uma road trip que refaz a mesma rota de 46 anos atrás, quando colocamos tudo o que tínhamos no porta-malas de um Corcel e partimos para Porto Alegre. Em Goiânia, ficariam minha mãe viúva e meus irmãos, que dependiam dos recursos que passaríamos a mandar de lá. Partimos cheios de esperança e medo para um destino desconhecido”.
Naquela época, dois jovens recém-casados, chegamos a Porto Alegre numa noite escaldante. Exaustos, dormimos num hotel próximo ao cais porto, de oitava categoria. No dia seguinte, um sol lindo e um calor sufocante nos esperavam no “Sul maravilha”. Foram sete anos até nossa volta para Goiânia.
Agora, o motivo para pegar a estrada foi outro: um sonho que nutrimos por muitos anos de conhecer as estações das águas de Araxá e Lindóia.
Araxá é especial por sua história, donde salta a personagem principal, a polêmica e bela Dona Beja; e suas águas consideradas milagrosas e tidas como “fontes de juventude eterna”.
Araxá nos presenteou com manhãs ensolaradas neste início de ano chuvoso em quase todo país. No encantador ambiente do hotel e suas termas pude concluir a leitura de O Mestre do Go, do escritor japonês Yasunari Kawabata, prêmio Nobel de 1968, que recria uma partida do milenar jogo chinês de estratégia do “mestre invencível” Shusai e Minoru Kitani, jovem desafiador do mestre.
Em uma longa partida, Kawabata mostra o declínio de um jogador idoso e a ascensão de um jovem de talento que o desafia, mas a doença, o cansaço e a exaustão da longa partida não desanimam o mestre. A certa altura, me deparo com a transcrição de um provérbio que muito me impressionou: “A vida é um fragmento da paisagem”.
Estão sintetizados nesse provérbio a integração do homem com a natureza e a impermanência da vida.
É este o mote dos meus dias atuais, que permeia a decisão de viver o hoje e o agora, incluindo fazer este roteiro de carro com minha mulher, nestes quase 50 anos juntos. Também nos incentivaram as histórias que me contaram, há mais de 55 anos, meus pais adotivos e diretores do Abrigo onde vivi.
A minha irmã adotiva Eleusa, me dá suporte à memória: “Sempre viajamos na kombi, acho que foi o primeiro hotel "chique" que vimos. Lembro-me de quando chegamos para conhecer as Termas, ver aquele hotel nos constrangeu. Sempre fomos pobres...Ficamos parados olhando aquela estrutura tão linda! O passeio foi sugerido por parentes que moravam em Araxá.”
A adolescente Eleusa ficou impressionada com a lama preta, que prometia rejuvenescimento e que dona Beja, personagem histórico e fascinante da cidade, fazia uso para se manter sempre bela. No retorno, Dona Modesta presenteou “as moças” do Abrigo com potinhos da milagrosa lama de Araxá. Era engraçado vê-las com as faces pretas da lama da juventude. É memória que guardo com afeto e prova o carinho de Dona Modesta com minhas irmãs adotivas.
Desse trecho da viagem, que guardaremos com zelo para o resto de nossas vidas, posso fazer associação poética aos versos sobre o Tempo, de Mário Quintana:
Beto, grato pelo texto. Uma provocação, dirigida ao autor Kawabata. O fragmento da vida não seria a soma de flagrantes preciosos que calam na alma. Digo isso pelo flagrante que saboriei, na singeleza de seu relato.
Magistral!