Venho escrevendo sobre a literatura chinesa e de outros autores não chineses que podem subsidiar o viajante desejoso de conhecer o país de Confúcio. O meu objetivo explícito seria fazer crescer o interesse pela China no coração e na mente de meus amigos e leitores deste espaço, preenchendo um vazio de divulgação dessa literatura entre nós brasileiros.
Mesmo sendo um leitor ávido, eu próprio conheci alguns dos autores aqui comentados um pouco antes de viajar para a China, onde passei uma temporada de quase dois meses, na primavera passada.
Sempre que me preparo para uma viagem a um país estrangeiro, cultivo um hábito antigo de me informar sobre a sua cultura, seu modo de viver e sua literatura. Leio romances, poemas e crônicas dos autores do país a ser visitado, bem como comentários de viajantes que fizeram aquela viagem antes de mim, enquanto minha mulher e companheira de viagem lê mais sobre história e geopolítica.
Lembro-me de que quando fui à América pela primeira vez, minhas inspirações vieram de Joaquim Nabuco e Albert Camus. Leituras diversas, mas cada uma, a seu modo, contribuiu para que eu apreciasse a América do ponto de vista de viajantes que me antecederam no conhecimento do país. O enriquecimento que esse processo traz foi estendido às recentes viagens à Coreia e ao Japão e ainda mais na viagem à China.
Explico como e dou exemplos. Quando penso sobre as leituras da minha mulher que aparentemente não são especificamente literárias: “Sobre a China” de Henry Kissinger, admito que terminam me levando a... escritores de literatura e não historiadores ou homens de Estado. Foi através das inúmeras citações de Kissinger que retornei à leitura de André Malraux, por exemplo e que derivei para leitura de Somerset Maugham...exemplifico no próximo artigo sobre “O véu pintado”.
O escritor inglês não é citado diretamente na obra imprescindível do ex-Secretário de Estado norte-americano, mas a pessoa que lê faz derivações de leituras com a apreciação de um livro. Isso me causou um choque ao reler agora na idade madura o livro de André Malraux, que Kissinger chama de filósofo e que eu intitulo ficcionista – um mentiroso nato, como está provado na “autobiografia” Antimemórias.
A propósito, sobre isso, o nosso querido Mário Vargas Llosa disse ser um livro ilegível, mas eu o li assim mesmo e ri muito da pessoa muito selfish chamada André Malraux. No fundo, é a biografia que todos nós escritores, pequenos ou grandes, queríamos ter escrito. Há momentos inolvidáveis ali. E muitas mentiras.
No dizer do prêmio Nobel peruano, Antimemórias é "um livro que 100 vezes decidi que não valia a pena ler, porque os personagens, entre os quais estão alguns dos principais líderes do século 20, encolhem-se para se submeterem à estatura desproporcional de Malraux..."
No entanto, há prazer ali, quando deixamos de checar todos os fatos da realidade e compreendemos aquilo como um romance.
A história (ou estória) do avô e do pai na Alsácia é impressionante. A paixão dele pelo Extremo Oriente é notável. Dizem que por ser um homem de ação (e não apenas de pensamento), se envolveu com os comunistas e as revoluções. Ora, ele próprio diz que, mesmo tendo ido à Rússia, nunca se filiou e nem endossou os métodos leninistas ou de Mao Zedong (que é como se escreve agora o nome de Mao Tzé Tong).
Ora, se Kissinger não tivesse sido o Secretário de Segurança Nacional dos EUA e depois por duas vezes Secretário de Estado, essa referência a Malraux já me bastaria a satisfação de ter lido (aleatoriamente) um livro de “não-ficção” – o achado, diria o reencontro do “malin” francês Malraux já me basta.
O Secretário da Cultura da França, sob a liderança do General De Gaulle, já me basta. Ele dizia que o agnóstico Malraux era o melhor interlocutor dele com os monges franceses. Ora, ora, isso não é pouco, para um agnóstico que teve um avô e um pai católicos até à medula.
A história do pai que fora ao Vaticano e ficara desolado com o tratamento recebido do Papa, faz com que aquele católico convicto passe a participar da Missa do lado de fora da Igreja, de pé (como o francês Bernanos o fazia dentro da Igreja, por razões diversas).
Ele se suicida. E esse episódio incrível do fim do seu pai, deixa André num ponto de questionamento decisivo. O suicídio gera a impossibilidade do enterro honroso, mas tudo se resolve com a química francesa. As amizades e os encontros
A tragédia ronda a vida de André Malraux, conforme nos diz Paulo Emílio Salles Gomes: “A lista [de tragédias] se inicia com o suicídio do pai, mas é em seguida que se torna realmente terrível. A segunda mulher – uma jovem –estraçalhada sob as rodas de um trem. Os dois filhos mortos num desastre de automóvel aos 18 e 21 anos de idade. Os dois irmãos sacrificados na Resistência, o que lhe era mais próximo, em circunstâncias de um absurdo atroz. Ele se encontrava entre os milhares de prisioneiros que, alguns dias antes de acabar a guerra, Himmler juntara a bordo do navio Cap Arcona -com a intenção de negociar a própria sobrevivência- e que foram aniquilados pelo bombardeio aliado”.
Malraux, como se vê é um homem infeliz, que só poderia ter escrito Antimemórias, que odeia a infância e que não tem o que comentar sobre a idade adulta a não ser ter se envolvido em todas as ações que o século exigia. Malraux é um símbolo do século mau e revolucionário – a condição humana está em tudo que escreve, desde a prisão na juventude por ter roubado obras de arte na Ásia.
Veja, benévolo leitor, que o interesse pela China, mesmo quando não se trata de literatura de imaginação – como é o caso do excelente livro de Henry Kissinger (Sobre a China), pode nos proporcionar prazeres e ligações muitos interessantes.
Dessa foto magnífica descubro que vem do site:
https://incinerrante.com/textos/o-museu-imaginario/
Estou ansioso para ler os romances do Malraux e o ensaio do Girard sobre eles.