Neste segundo artigo desta série em que lanço meu olhar para o Império do Centro, a grande China, a partir dos livros, tenho sobre a mesa “Viver[1]”, do celebrado Yu Hua (nascido em Hangzhou em 1960), o primeiro escritor chinês a receber o Prêmio James Joyce Award em 2022, além de outras importantes distinções internacionais.
De forma bem-humorada, ele diz que se tornou escritor porque estava cansado de ser dentista prático e não queria passar a vida examinando a boca dos seus clientes. Optou por expor sua alma em livros que são um sucesso em todo o mundo, o que fez dele talvez o mais influente autor chinês, ao lado de Mo Yan.
Desde 1983, Yu Hua dedica-se inteiramente à escrita, tendo participado de um grupo de escritores vanguardistas e depois tomando seu próprio caminho, com uma missão de mostrar a história da China ao mundo. Ele publicou cinco romances, seis livros de contos e cinco ensaios, e já foi traduzido para mais de 45 idiomas.
Entre suas obras mais importantes estão “Irmãos”, “Crônica de um vendedor de sangue” e “China em dez palavras” (já disponíveis em português); e Cries in the Drizzle, The Seventh Day (não traduzidos). Por sua obra, Hua recebeu inúmeros prêmios e distinções internacionais, incluindo o Prêmio Grinzane Cavour (1998), Chevalier de l'Ordre des Arts et des Lettres (2004), Prix Courrier International (2008) e Giuseppe Acerbi Literary International Prize (2014). O diferencial entre todas essas comendas, é que ele ter sido o primeiro escritor chinês a receber o prêmio James Joyce (2022).
“Viver” (título que seria mais apropriado: “Vivendo”) deu origem ao filme de mesmo nome, dirigido por Zhang Yimou e foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri de Cannes, BAFTA Awards, entre outros. O livro pode ser considerada uma espécie de "autobiografia", na qual a vida do protagonista Fugui é repassada, num raconto feito por ele próprio a um coletor de histórias rurais, um andarilho que é o narrador anônimo (e onisciente) que nos conduz pela história do protagonista.
“Quando eu era dez anos mais moço, consegui um trabalho fácil. Tinha de ir ao interior recolher músicas folclóricas. No verão daquele ano, eu era comum pardal sem rumo, vagando pelas lavouras repletas de sol e cigarras. Eu gostava do chá amargo dos camponeses.
(...)“Quando encontrei um velho chamado Fugui, o verão começara havia pouco. Naquele início de tarde, me instalei sob a copa enorme de uma árvore...Essa pessoa dez anos mais jovem do que sou hoje, deitada entre as folhas e a relva, dormiu cerca de duas horas...Acordei do meu sono profundo. Escutava claramente uma voz e, ao me levantar, vi um velho ralhando com um búfalo que estava numa lavoura próxima.”
(...)
“- Sendo búfalo, are o campo; sendo cachorro, zele pela casa; sendo monge, peça esmolas; sendo galo, anuncie o amanhecer; sendo mulher, teça o pano. Qual o búfalo que não ara o campo? Essa é a ordem natural das coisas, desde a Antiguidade. Ande búfalo, ande! – o búfalo, cansado dos gritos do velho, pareceu reconhecer seu erro. Levantou a cabeça e, puxando o arado, pôs-se a andar para a frente.”
Sentados embaixo da copa de uma árvore, o andarilho - como a cigarra da fábula e Fugui - como a formiga, tornam-se, “naquela tarde radiante de sol”, narrador e protagonista que nos desvendam a história da vida de um velho chinês, repassando quarenta anos da história pessoal, familiar e, por que não, de seu próprio país.
É, pois, a partir dessas viagens às áreas rurais, onde o ofício do narrador anônimo era coletar canções folclóricas, que somos levados à imersão nas histórias de Fugui. Por esta razão que o texto desta "autobiografia oral" é considerado simples, como se estivéssemos ouvindo um camponês com pouca (ou nenhuma) instrução formal, mas com a sabedoria popular que se veio acumulando entre erros e acertos, como um típico “herói problemático”
Sabe-se que a história oficial não pode nem está interessa em registrar todas as "figuras românticas", heroicas de um país. Como pode haver espaço para separar um grupo tão grande de pessoas e escrever sobre elas como indivíduos? Essa lacuna só pode ser preenchida pela literatura – daí, a França de Stendhal, de Flaubert ou Proust não ser jamais a França oficial; ou tal como no Brasil de Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos (para pegar dois arcos tão diferentes da nossa criativa literatura) estamos diante de um país na nossa imaginação sem perdermos o pano de fundo das “histórias oficiais”.
De modo similar, esse resultado foi alcançado pelo autor de “Viver”. Ele trouxe uma pessoa comum para o centro da narrativa da turbulenta história chinesa num arco de quarenta anos, tomando alguns exemplos do que poderia ser chamado de “a escória humana”, aqueles que história oficial relega ao esquecimento ou trata como estatística, para, habilidosamente, moldá-los como o barro criador de seu registro romanesco, a partir da própria força de Fugui.
Essa espécie de autobiografia oral mantém escondidas as figuras românticas de heróis clássicos, pois se ocupa dos humilhados e ofendidos, dos que sobrevivem seguindo regras e até mesmo ao recrutamento forçado, que faz de Fugui um soldado do exército nacionalista que quase perde a vida nos embates dos nacionalistas na guerra civil, em luta contra os comunistas - o que culmina com a tomada do poder por Mao Zedong.
Fugui nos conta como sobrevive aos principais eventos históricos nos últimos quarenta anos, através de um narrador anônimo nascido da pena habilidosa (e realista) de Yu Hua, mesmo que a realidade sirva apenas como pano de fundo da narrativa: a rendição do Japão, a Guerra de Libertação, a reforma agrária, as comunas populares, o Grande Salto e a produção de Aço (que leva ao confisco de panelas nas aldeias e cidades), os Dez Anos de Desassossego e o Sistema de Responsabilidade do Contrato Doméstico, a Grande Fome e as filas para buscar comida no refeitório comunal…
Fugui obviamente não pode por sua própria força mudar o cenário trágico estabelecido pelas perdas e agruras vividas– ele chega a afirmar que o esperado do povo do campo é obedecer às autoridades – do chefe da Aldeia ao líder supremo. Yu Hua amarra esses eventos históricos de forma orgânica e atrativa à vida do personagem trágico que nos ensina que viver é também aceitar a morte.
Se muitas histórias oficiais podem ser jogadas na lata de lixo da história após a morte de seus atores, esta história não oficial provavelmente continuará a viver longa e teimosamente. O jornalista português Miguel Fernandes Duarte em artigo sobre “Viver” (ver link), me fez olhar para Fugui como um típico “herói problemático”, pois, afinal, “sua jornada o leva desde o cume da sua arrogância afluente ao sopé da sua humildade pobre”. E nem diante de tantas perdas ao longo da vida, ele desiste de viver. Ele afirma quase ao final de seu raconto:
“Pensando bem, essa vida passou muito depressa” – “Vivi uma vida comum; meu pai esperava que eu honrasse o nome da família, mas, pelo jeito, apostou na pessoa errada. Para mim, foi esse o meu destino. Quando jovem, torrei toda a fortuna que os antepassados haviam deixado e, depois, fui ficando cada vez mais miserável. Foi melhor ter vivido como gente comum do que como Long Er e Chunsheng, que brilharam por um instante e no fim pagaram com a própria vida. Eu, quanto mais vivi, mais incompetente me tornei, mas tive uma vida longa. Todas as pessoas que conheci morreram, uma depois da outra, e eu, ainda estou aqui vivo”.
Segundo um comentarista no Baidu (“o Google chinês”), nickname Master Hua (!), "o escritor Yu Hua usa um estilo narrativo semelhante ao de um romance neorrealista "com aparente intervenção zero" na história, fazendo de "Viver" uma tragédia, mas com uma beleza visual que choca o leitor, apresentando um alívio caloroso ao final.”
Sobre esse caráter de Viver como típica narrativa fundada na oralidade, ouvi duas pessoas que encontrei na recente viagem à China, e com as quais tive a honra de estabelecer laços de amizade, ambas com atividades intelectuais importantes em Shenzhen e Hong Kong.
A professora e palestrante internacional chinesa She Xi Yan me disse
“Tenho certeza de que a oralidade na literatura chinesa desempenha um papel muito importante, até mesmo na história chinesa. Como "os livros de canções " ( 诗 经 ) é um trabalho representativo na história da literatura chinesa antiga e é das pessoas, a oralidade, as pessoas etc. Há muitos... sabemos que o povo chinês sempre tem realmente admirado seu líder, do vilarejo à esfera nacional, e o líder político desempenha um papel muito importante na mentalidade das pessoas. Porém, na área da literatura, a sabedoria das pessoas comuns é o que realmente importa, essa é mantida e altamente respeitada, o que é interessante” – conclui Xi Yan.
Aka (Carmem) Writer, autora de um importante livro de crônicas de viagem e turismo (Cambodia, Flores de maio, 2004), afirmou:
"Eu acho que a literatura é, em grande parte, isso mesmo, é sobre a vida das pessoas, donde se extraem histórias folclóricas, cheias de oralidade. Essa é uma questão muito ampla. Primeiro porque do ponto de vista das técnicas de escrita, é provavelmente apenas a partir da expressão de Fugui que o autor encontrou o caminho mais fácil, mais fluente e mais autêntico para restaurar a história, era essa a expressão que o autor queria resgatar. Do ponto de vista histórico, social e político, este é o caminho mais seguro e, do ponto de vista da publicação literária, esta é a maneira racional de ver a obra publicada.”
Outros livros de Yu Hua podem ser encontrados em português e é com uma frase do autor que convido você a conhecê-lo mais: “O maior deleite que nos traz a literatura é encontrar os próprios sentimentos dentro dos escritos do outro, como se víssemos nosso próprio reflexo no espelho do outro. E não há diferença se você é rico ou pobre.”
Para saber mais sobre o autor, conheça este site do professor Christopher Rea.
[1] HUA, Yu (1960). Viver; trad. do Chinês por Márcia Schmaltz – S. Paulo, Cia das Letras, 1008.
O Gemini da Google entendeu este meu ensaio - confiram no link abaixo:
https://g.co/gemini/share/f7f7b9e6e49a